Vida Esportiva
'As marcas ficam com a gente': torcedores do Flamengo contam como vivem um mês após tragédia com ônibus fretado na Dutra
Entre cirurgias, fraturas e medo de viajar, vítimas acusam negligência da empresa e cobram explicações; ao GLOBO, relataram como está sendo tentar retomar a rotina
Passado um mês do tombamento do ônibus que levava torcedores do Flamengo para a Argentina, na Via Dutra, em Barra Mansa (RJ), as lembranças do acidente ainda ferem — algumas na pele, outras atravessam o sono e até mesmo o espelho. Entre curativos, cicatrizes, fisioterapia e noites mal dormidas, dois sobreviventes que estavam no coletivo relatam ao GLOBO uma rotina que parece paralisada no tempo, misturando gratidão por estarem vivos com a dor de ainda não terem encontrado justiça nem respostas.
Entre o futebol árabe e a Premier League:
O ônibus, fretado pela empresa Rio Sul Turismo, saiu do Rio de Janeiro na manhã de 27 de outubro com 46 passageiros de duas torcidas rumo à Argentina, onde o Flamengo enfrentaria o Racing pela Libertadores. A viagem, porém, nunca passou de Barra Mansa. Na altura do km 282, o coletivo tombou após perder o controle e girar várias vezes na pista. Trinta e cinco torcedores ficaram feridos e foram distribuídos para três hospitais da região.
Entre os sobreviventes estão o assistente de departamento pessoal Daniel Peixoto, 28 anos, membro da Nação 12, que perdeu parte dos movimentos da mão direita após ter três dedos esmagados, e Maria Devanderly, da Urubuzada, técnica em radiologia de 27 anos que sofreu fraturas no rosto e na costela, além de carregar três cicatrizes que, segundo ela, “não são apenas marcas, mas lembranças de um trauma”.
Ambos estavam no ônibus e dizem o mesmo: o acidente não foi uma fatalidade — foi consequência de negligência. Procurada, a Rio Sul Turismo não respondeu até a publicação desta reportagem. A Polícia Civil afirmou ao GLOBO que “uma investigação está em andamento na 90ª DP (Barra Mansa) e o condutor do coletivo já foi ouvido".
Rumo a Argentina
A tragédia, contam os sobreviventes, começou antes do ônibus girar na pista. O primeiro veículo fretado deu defeito na estrada: “barulho de pneu furado”, “roda mal parafusada”, “sorte de não ter soltado”. A troca de ônibus atrasou a viagem, aumentou o cansaço e acendeu um alerta.
— Já ali dava para perceber que tinha algo errado — lembra Daniel.
Minutos depois de o grupo embarcar no segundo ônibus e retomar a estrada, o coletivo parou para abastecer. Outros quinze minutos de pista e, então, fez a curva que mudou tudo.
Maria estava de pé. Uma fotografia no celular acabara de ser tirada. Ela caminhava em direção ao banheiro quando sentiu o primeiro solavanco.
— O ônibus começou a derrapar, bateu no muro, girou… e na hora que caiu, eu bati o rosto no bagageiro — conta. Quando conseguiu se levantar, viu a mão coberta de sangue. Ali, no meio do barulho das latarias e dos gritos, entendeu que algo grave havia acontecido.
Imagem forte
Do lado esquerdo do ônibus, onde Daniel estava sentado, o cenário foi outro — mas igualmente desesperador. Ele caiu com o rosto no chão e percebeu que algo o impedia de se mover.
— Olho pela janela e vejo tudo girando. Achei que fosse morrer. Ouvi gritos, senti pessoas em cima de mim… e minha mão estava presa atrás do corpo. Foram quarenta minutos preso — lembra.
Cicatrizes abertas
No hospital de Barra Mansa, filas de feridos formavam um cenário de pânico que não deixava dúvidas. Maria, por conta do sangramento, foi uma das primeiras a ser levada. Recebeu pontos no rosto, passou por tomografia, raio-x. Quando voltou ao Rio, veio o diagnóstico completo: quatro fraturas na face, além de uma na costela.
— As cicatrizes ficaram no olho, no nariz e na bochecha. Para muita gente é detalhe… para mim é reviver tudo, toda vez que me olho no espelho — disse ela.
Daniel também descobriu, ainda no hospital, que poderia perder a mão inteira. Três dedos estavam completamente esmagados, e uma matriz dérmica (material de regeneração de tecidos que imita a estrutura da pele) precisou ser colocada para reconstruir a parte superior da mão. Dois pinos metálicos mantêm o osso alinhado.
Desde então, usa um curativo a vácuo (VAC), que suga secreções, acelera a cicatrização e precisa ser trocado em intervalos controlados. Neste domingo, passou por mais um procedimento cirúrgico.
— Tem dia que bate um desespero. Minha janela não abre, fico sem ver o sol. Sinto que estou preso desde o acidente. Peço a Deus para não desmoronar — relata. Ele ainda não tem previsão de alta.
Imagem forte:
Negligência, silêncio e busca por justiça
O motorista do ônibus tinha 19 anos. Os sobreviventes dizem ter sido informados, ainda no local, que ele não tinha habilitação para conduzir ônibus. Eles também afirmam que o condutor deixou o local do acidente. A Rio Sul Turismo, responsável pelo transporte, não prestou auxílio direto às vítimas, segundo os feridos. A empresa teria apenas passado o contato da seguradora, que não retornou até agora.
— Não é possível chamar isso de fatalidade. Teve negligência — diz Maria, que prepara ação judicial. Daniel concorda.
— Entregaram a vida de 46 pessoas na mão de alguém que não podia dirigir. Quero que seja investigado até o fim. É um milagre não ter morrido ninguém.
Uma 'fuga' após o trauma
Maria voltou ao trabalho como técnica de radiologia na semana passada, mas ainda sente dores quando precisa movimentar o corpo. O dedo inchado, o impacto no rosto e a costela fraturada exigem passos curtos.
— Voltar tem sido bom porque distrai… mas é difícil responder perguntas, reviver tudo — diz.
Daniel tenta se manter emocionalmente firme. Nos dias de jogo, chora nos minutos que antecedem a entrada do Flamengo em campo — lembra do Maracanã, da vida antes do acidente —, mas depois encontra nas partidas uma trégua.
— Tem sido uma montanha-russa. O Flamengo continua sendo a válvula de escape. Quando o jogo começa eu fico em paz. Tem sido a melhor parte — afirma.
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