Vida e Saúde

‘Achei que ele não fosse resistir’: 1º criança com câncer no Brasil a se tratar com CAR-T Cell completa 1 ano sem a doença

Depois de quimioterapia e transplante falharem, Lorenzzo Bom Costa, de 10 anos, participou do estudo no Einstein Hospital Israelita em parceria com o Ministério da Saúde, e completou um ano livre da leucemia; leia relato da mãe

Agência O Globo - 28/10/2025
‘Achei que ele não fosse resistir’: 1º criança com câncer no Brasil a se tratar com CAR-T Cell completa 1 ano sem a doença
- Foto: Reprodução / Agência Brasil

"Nós moramos na zona rural, no interior de Vila Valério, no Espírito Santo. Em setembro de 2019, eu levei o Lorenzzo, com 4 anos, para cortar o cabelo na cidade, e ele pediu pra descer no escorregador de um parquinho pela primeira vez. Mas quando ele desceu, caiu sentado e, na hora que foi levantar, não conseguiu ficar em pé e começou a reclamar muito de dor nas costas.

Eu levei ele logo para o pronto-socorro, mas os movimentos já tinham voltado, e ele já estava andando de novo. Só que, a partir daí, ele começou a sentir muita dor na coluna. Não conseguia levantar direito, sentar, tinha que ajudá-lo. O médico falou que, por causa da queda, era normal ele sentir dores por algum tempo. Mas começaram também outros problemas, como barriga inchada. Levei várias vezes no pronto-socorro e sempre falavam que era gases. Às vezes tinha febre e falavam que era uma virose.

Até um dia de noite que ele ficou muito ruim. Chegamos a pedir encaminhamento para Colatina, mas não quiseram mandar. Então pegamos ele e levamos para Nova Venécia. Lá, ele ficou quatro dias internado. O pediatra suspeitou de leucemia porque as plaquetas tinham caído muito, mas não me contou ainda e encaminhou a gente para um outro hospital em São Mateus.

Ficamos lá mais seis dias com ele internado e falaram que era dengue. Só que logo depois o Lorenzzo começou a parar de andar sozinho e encaminharam a gente novamente, só que para o Hospital Infantil Nossa Senhora da Glória, de Vitória. Lá, depois de uma semana de exames, descobrimos finalmente que era uma leucemia linfocítica aguda (LLA). Foi um desespero total, eu estava sozinha com ele lá, numa cidade onde não conhecia ninguém. Receber essa notícia foi uma pancada bem forte.

Começamos o tratamento com as quimioterapias que duraram até 2022. Nesse intervalo, foram muitos altos e baixos. Ele parou de andar, de sentar, emagreceu muito. Naquele momento, achei que ele não fosse resistir, que não ia aguentar o tratamento todo, mas fomos até o final. Depois, ficamos acompanhando, indo ao hospital uma vez ao mês para fazer exames. Em junho de 2022, veio a primeira notícia de que a doença tinha voltado, e começou tudo outra vez.

Um novo tratamento com ciclos de quimioterapia e internação. E, em 2023, fomos para São Paulo fazer o transplante de medula, que tinha indicação por ser uma recidiva da leucemia. Fomos eu, ele e o pai, que doou a medula. Ele tinha 8 anos. Deu tudo certo na época e acreditávamos que ele tinha sido curado. Em março do ano passado, fez um ano do transplante. Mas, em abril, descobrimos a segunda recidiva. Foi quando o chão se abriu mesmo, porque nossa esperança com o transplante era que a doença não voltasse nunca mais.

Aí começamos de novo o tratamento com a quimioterapia e recebemos a notícia da médica em Vitória de que o caso do Lorenzzo se encaixava em um estudo que o Einstein Hospital Israelita estava fazendo com o CAR-T Cell. Até então eu nunca tinha ouvido falar dessa terapia, não sabia o que era. A médica explicou e foi uma nova esperança. Saber que, mesmo a quimioterapia e o transplante não tendo funcionado, ainda tínhamos uma nova opção de tratamento que poderia levar meu filho à cura.

Fomos, então, novamente para São Paulo fazer o CAR-T Cell. O hospital custeou todos os gastos, desde passagem até transporte e estadia. Tudo ocorreu dentro do previsto. Ele precisou entubar por três dias porque teve uma convulsão depois do tratamento, ficou na unidade de terapia intensiva (UTI), o que já sabíamos que poderia acontecer. Eu me desesperei muito, nunca tinha visto uma pessoa entubada, e ver logo seu filho nessa situação é muito difícil.

Mas no final deu tudo certo. Retornamos agora em setembro, um ano depois, para fazer os últimos exames e ele está muito bem, e o câncer continua em remissão. Hoje Lorenzzo tem 10 anos, frequenta a escola. Ele ficou muito tempo longe da sala de aula, as professoras montavam apostilas e eu ia ensinando em casa. Em 2023, ele chegou a voltar à escola por uma semana, mas tivemos que cancelar por causa da volta da doença. Só nesse ano que ele realmente conseguiu retomar os estudos.

Ele falava “mãe, eu não posso brincar, não posso jogar bola, não posso tomar sol, não posso nada”. Só em janeiro desse ano que a médica liberou ele a voltar a fazer tudo, ir à escola, brincar. Eu ainda tenho medo, porque só agora que estamos começando a tirar as medicações pós-procedimento. Mas ele já está aprontando todas. Hoje foi para escola feliz porque tinha educação física.

Ainda vamos todo mês no hospital para fazer exames e consulta com a equipe de oncologia em Vitória. E o CAR-T Cell zera as vacinas dele, então estamos refazendo todas. Mas Deus sabe de tudo. Se o Lorenzzo não tivesse ido naquele escorregador lá no início talvez tivéssemos demorado para descobrir essa doença e seria tarde demais.

Então para outras mães que estão nessa situação, eu diria para que não percam a fé. Não desistir. Muitas vezes eu falei que não ia aguentar, mas todo dia eu acordava e minha fé estava renovada que ia dar certo. E esses novos tratamentos são uma esperança de que vamos ter cada vez mais alternativas não só para leucemia, como para outros tipos de câncer.

Desde quando o Lorenzzo começou o tratamento, se eu te falar que ele algum dia ficou chorão, triste, mesmo fazendo quimioterapias pesadas, eu estaria mentindo. Ele podia estar passando pelo que fosse, mas estava sempre com um sorriso no rosto. Ele é uma criança alegre, que gosta de brincar, de estudar, jogar bola, andar de bicicleta. É muito raro vermos ele triste, apesar de tudo que ele passou."

* Em depoimento ao repórter Bernardo Yoneshigue

O que é CAR-T Cell?

O CAR-T Cell é uma terapia inovadora para câncer que tem avançado para o tratamento de leucemias e linfomas. No Brasil, há dois estudos clínicos em andamento com produção nacional da tecnologia com objetivo de levá-la ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Um é conduzido no Hemocentro de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), e o outro no Einstein em parceria com o por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (Proadi-SUS).

A técnica envolve a edição genética de células de defesa do sistema imunológico chamadas de linfócitos T para que elas passem a reconhecer o câncer e atacá-lo. É uma espécie de autotransplante, em que as células são coletadas, modificadas em laboratório, multiplicadas e reinseridas no paciente.

No Einstein, desde 2022, o CAR-T Cell é testado para tratamento de pacientes com linfomas de células B e leucemias linfocíticas agudas ou crônicas B em casos de recidiva ou resistência ao tratamento padrão. Até o momento, 11 pacientes já participaram do estudo, e Lorenzzo foi o primeiro pediátrico.