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Entraves à redenção: Perfil de adolescentes no Degase revela que 76% são do CV e que reincidência é comum

Segunda reportagem da série “Juventude perdida”, sobre a vida de quem entra cedo para as fileiras do crime, revela o perfil dos adolescentes que ingressam no Degase, cuja missão é reabilitá-los e reintegrá-los à sociedade.

Agência O Globo - 08/12/2025
Entraves à redenção: Perfil de adolescentes no Degase revela que 76% são do CV e que reincidência é comum
Entraves à redenção: Perfil de adolescentes no Degase revela que 76% são do CV e que reincidência é comum - Foto: Reprodução / Agência Brasil

As memórias de Luciana e Roberto (nomes fictícios) se completam quanto à breve vida do filho, morto pela polícia do Rio aos 18 anos, durante uma operação. No início da relação entre os dois, ambos usavam drogas e brigavam frequentemente. O menino assistia a tudo. Após a separação, a mãe ficou um longo período em situação de rua e não conseguiu acompanhar o início da adolescência do menino. Já o pai se casou outra vez e, junto à nova companheira, criou o garoto e seus irmãos. Luciana não sabe como o filho começou no tráfico, mas lembra que a primeira passagem dele pelo Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), aos 15, foi decisiva. Segundo ela, após três meses de internação, o garoto saiu de lá “graduado” e com posto no grupo do Comando Vermelho que dominava a região de Guadalupe, na Zona Norte carioca, onde moravam.

Vida breve nas mãos do crime:

'É duro ouvir do filho que ele gostou de ser bandido':

A segunda reportagem da série “Juventude perdida”, sobre a vida de quem entra cedo para as fileiras do crime, revela o perfil dos adolescentes que ingressam no Degase, cuja missão é reabilitá-los e reintegrá-los à sociedade. Um relatório do departamento, ao qual O GLOBO teve acesso, aponta que, como nos presídios para adultos, a ampla maioria dos jovens que cumprem medidas socioeducativas já é faccionada. O CV é maioria entre os adolescentes que passaram por lá de janeiro a outubro deste ano: 76%. Os do Terceiro Comando Puro (TCP) representam 17,45%, enquanto os da Amigo dos Amigos (ADA) são 1,7%. Ao todo, 2.765 menores diferentes ingressaram no sistema nesse período.

Parte dos dez garotos do Complexo da Penha que o jornal acompanhou ao longo de um ano para produção desta série já passou pelo Degase. Dos seis que morreram ao longo dos 12 meses de monitoramento, quatro tiveram ao menos uma internação ao longo de suas vidas. Dos que seguem vivos, ao menos dois já estiveram internados: são irmãos e, no ano passado, foram apreendidos com apenas quatro dias de diferença — um roubando carro em Madureira, na Zona Norte, e o outro na Avenida Brasil, ao retornar de uma “guerra” na Zona Oeste.

Fuzil em punho

A história do filho de Luciana e Roberto remete a outro contexto, porém, com um destino semelhante ao dos jovens da Penha. Ao deixar o Degase, o rapaz virou “radinho”, olheiro do tráfico, e passou a frequentar mais as bocas de fumo da comunidade. Segundo o pai, ele foi subindo na hierarquia, ganhou um fuzil e chegou a virar “chefe de endola”, nome que se dá ao responsável pelo empacotamento das drogas.

A busca por corpos na mata da Vacaria:

— Meu filho se envolveu com más companhias. Começou a andar na garupa das motos dos garotos que eram do tráfico. Depois, passou a pilotar. Ele se escondia de mim, negava tudo. Fui na boca várias vezes perguntar por ele, e os rapazes acobertavam. Eu sempre me esforcei para criá-lo direitinho, e a mãe, quando se recuperou da rua, também fazia de tudo por ele — conta Roberto.

Apesar de fazer confusão com datas, ele recorda da vez que resolveu mexer na mochila do filho e acabou encontrando um caderno com anotações do tráfico.

— Estava lá “pó de tanto”, “maconha de tanto”. Eu briguei muito com ele. No desespero, até bati. Sei que é errado, mas, na hora, eu achei que ia resolver. Ele continuou no tráfico. A diferença é que escondia o fuzil quando eu passava, fingia que não estava fumando, corria para se esconder. Eu nunca concordei com essa escolha, tentei levá-lo para a igreja, mas ele já tinha se acostumado com essa vida — completa.

Para fora do Rio:

Luciana conta que o filho passou duas vezes pelo Degase. Na segunda vez, permaneceu por cinco meses. A reincidência, aliás, como descreve o relatório do departamento, é comum entre os adolescentes. Cerca de 42% dos que ingressaram no sistema este ano já tinham passagens anteriores. Para a mãe, que também passou por internação quando menor, a ressocialização é praticamente um mito.

— Eu já fui apreendida, já fui presa. Eu sei o que é passar por tudo isso. Têm agentes que esculacham mesmo. É muito difícil acreditar na ressocialização, a pessoa só sai desses lugares com ainda mais raiva. Parece até que passa por uma transformação. Eu deixei de trabalhar inúmeras vezes para ir visitá-lo no Degase. A gente chorava, e ele dizia que ia ficar de boa. Mas não deu tempo — desabafa ela.

Baixa escolaridade

O rapaz estudou até o 6º ano do ensino fundamental, situação que também se repete no perfil divulgado no documento do Degase: 46% dos adolescentes no sistema não estavam matriculados em escola este ano. É justamente o 6º ano o ponto de partida para a maioria das evasões, já que é quando o ensino passa a se segmentar em mais disciplinas, e os professores são mais rotativos.

O levantamento aponta ainda dois desafios enfrentados atualmente pelo departamento: a lotação das unidades e a inserção dos adolescentes no mercado de trabalho formal. No dia 2 de dezembro, havia uma fila de espera de 307 posições para entrada no Degase, considerando todas as medidas de internação (provisória e definitiva), como divulgou o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Infância e Juventude, ligado ao Ministério Público do Rio (MPRJ). Para 2026, estão previstas mais 464 vagas, um aumento de 43%.

‘Forasteiros’ encastelados:

Já a profissionalização dos adolescentes continua sem destino certo. Em 2025, apenas 34 jovens que tiveram passagem ou ainda cumprem medida de semiliberdade foram inseridos no Programa Jovem Aprendiz. Esse número não chega a 2% do total que deu entrada no sistema este ano. O estudo, no entanto, não aponta alternativas para melhorar essa realidade.

— A situação desses meninos só vai melhorar se tiver investimento efetivo em educação e profissionalização. Eles precisam saber que são capazes de aprender e fazer atividades que não sejam relacionadas ao tráfico. A inserção deles na criminalidade acontece pela total falta de perspectiva e pelo vislumbre com o enriquecimento rápido. Então, é fundamental que eles sejam envolvidos em políticas públicas, trabalhos formais, parcerias público-privadas de longa duração — reforça a defensora pública Maria Saboya, subcoordenadora da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Afoito com as lembranças do filho, Roberto recolhe a voz e, após um silêncio repentino, lamenta:

— Ele não queria essa vida, mas essa foi a vida que ele viveu.

A expectativa de futuro não estava ligada a profissão alguma, mas ele sabe que o filho, além de muito bonito, como o descreve, gostava de dançar e era “brabo” no desenho:

— Eu guardo muita saudade. Apesar de tudo, eu sou apaixonado pelo meu filho. Depois que ele morreu, eu virei uma geladeira. Sou frio, escolhi viver a vida esperando o dia da minha morte. Também não sou capaz de ter sonhos. Na verdade, só espero um dia poder me reencontrar com ele. Tomara que seja no céu.