RJ em Foco
Comissão de Direitos Humanos da OEA visita famílias no Complexo da Penha para apurar abusos de megaoperação policial
Secretária-executiva da CIDH ouviu familiares das vítimas, que relataram ausência de socorro e tratamento indigno: 'Estado brasileiro já foi condenado por fatos similares', alerta
Depois de quatro dias em reuniões com autoridades de distintos níveis do Estado em Brasília e no Rio, a realizou uma visita técnica, no último sábado, a familiares de vítimas mortas na megaoperação policial nos complexos da Penha e do Alemão, em outubro. A comitiva desembarcou no Brasil no início da semana passada para apurar denúncias de possíveis violações e abusos das forças policiais.
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A incursão, considerada a mais letal da história do país, deixou 122 mortos, dos quais 117 suspeitos e cinco policiais. No mês passado, três dias após a operação, a CIDH se posicionou contra o episódio, e afirmou que "condena veementemente o número extremamente alto de mortes registradas no contexto da 'Operação de Contenção'”.
A Comissão é um órgão independente que integra o sistema da Organização dos Estados Americanos (OEA) e tem anuência do Estado brasileiro para fazer a investigação. A delegação é formada pelo presidente da CIDH, comissário José Luis Caballero (chefe da delegação), pela secretária-executiva Tania Reneaum Panszi, pela secretária-executiva adjunta, Maria Claudia Pulido, e por integrantes da equipe técnica.
Na Penha, a equipe escutou sete mulheres – seis delas, mães que perderam seus filhos, e uma delas, esposa de um dos mortos. Em entrevista ao GLOBO, Tania Reneaum Panszi explicou detalhes da investigação e o que foi apurado até agora. Um relatório com as conclusões do órgão será elaborado e divulgado nas próximas semanas.
A CIDH já esteve no Brasil em situações similares. O que há de diferente no caso da megaoperação nos complexos da Penha e do Alemão?
Há algumas diferenças. Primeiro, a magnitude — foram muitas pessoas mortas. Depois, chamou atenção que não sabemos se há feridos, quantos são e as consequências para eles. Em operações desse tipo, geralmente há mortos e feridos. E terceiro, é que existe uma diferença muito grande entre o número de mortos moradores da favela e o número de mortos das forças de segurança.
Isso indica possíveis execuções pela desproporção entre mortos da comunidade e mortos da polícia?
Não gostaria de concluir isso ainda. Mas há indícios. Há relatos de ausência de socorro ou ajuda a pessoas que estavam feridas ou rendidas e depois foram encontradas mortas.
O que a senhora ouviu dos familiares das vítimas nesta visita no Complexo da Penha?
Elas expressam uma grande dor, não só pela perda, mas também pelo tratamento indigno aos cadáveres, pela falta de informação nos primeiros momentos e também pelo estigma que recai sobre as mulheres. É difícil falar “os familiares” quando, na verdade, são as mulheres que estão trazendo a conversa e o relato do que aconteceu, as mães e as esposas, agora viúvas. E essas mulheres expressam tristeza pela perda, indignação pelo tratamento, por não entenderem exatamente o que ocorreu no dia dos fatos e por terem encontrado seus filhos ou companheiros mortos na praça, após uma busca pelos cadáveres no morro.
Há indícios de que houve violação de direitos humanos na megaoperação?
Elas relataram casos que poderiam parecer abusos, mas a Comissão Interamericana de Direitos Humanos não pode concluir nada sem ter todos os elementos sobre a mesa. Para algumas mães, seus filhos se renderam enquanto ainda estavam vivos e, posteriormente, morreram. Mas esse é o relato das mães. Precisamos realizar investigações muito mais profundas para entender exatamente o que aconteceu e a sucessão de fatos.
Essas mulheres presenciaram essas cenas ou souberam por meio de outras pessoas?
A maioria das mulheres que ouvimos reconstruíram um relato. Muitas não puderam constatar nada pessoalmente, mas ouviram de pessoas que testemunharam a cena. Teve uma que falou, por exemplo, que soube que o filho já havia se rendido, e mesmo assim morreu. Mas elas não podem constatar se realmente foi como disseram, porque a cena foi completamente modificada.
Por isso é tão importante preservar a cena dos fatos, preservar os corpos, e saber quem os moveu. As mães têm um relato — é preciso respeitá-lo — mas também é preciso corroborá-lo com outros elementos que ninguém tem no momento, e que o Estado está investigando.
Como essas conversas são conduzidas e o que mais chamou sua atenção?
Nós as entrevistamos de modo livre. Deixamos que elas falem e fazemos algumas perguntas para entender o contexto, os fatos, horários, dias e também como as autoridades do Estado reagiram em cada caso.
Numa perspectiva de direitos humanos, chama a atenção o fato de que, após a operação, não houve um rastreamento ou preservação de provas ou elementos que permitiriam uma investigação posterior para determinar responsabilidades; os corpos foram retirados pela própria comunidade e não necessariamente pelas autoridades, perdendo-se provavelmente muitos elementos da cena. Isso acaba prejudicando um relato de memória ou de verdade para as pessoas que buscam entender o que aconteceu — não só os familiares, mas toda a sociedade, que precisa de explicações.
Também chama a atenção a forma como as mães relatam como foram tratadas pelas autoridades, e por um contexto social em que a discriminação é naturalizada quando se é pobre, da periferia e mulher negra. Parece existir uma categoria de mulheres que não têm acesso à verdade, à justiça ou à reparação por fatos que precisam ser explicados.
Qual é a metodologia da Comissão em investigações como essa?
Antes de cada missão nós nos informamos muito. A Comissão Interamericana conhece o contexto brasileiro porque, em 2019, realizou uma visita in loco. Depois, publicamos um informe de país em 2021. Este informe e outros nove comunicados publicados desde esta época até dois dias após os fatos, no final de outubro, revelam o profundo conhecimento que a Comissão tem sobre os fatos de violência policial que se repetem.
Não são casos isolados, mas padrões de comportamento das forças de segurança do Estado, que mostram uma tendência: reconhece-se a criminalidade, reconhece-se a complexidade do problema, mas também que há operações policiais extremamente violentas, e que as pessoas mais afetadas são jovens, homens, afrodescendentes.
Quando olhamos para a história do Brasil — os fatos da chacina de Nova Brasília e da favela do Acari — vemos como situações parecidas vão se repetindo ao longo do tempo. Realizamos dois momentos de escuta com mães que fazem parte da rede de apoio a vítimas de violência do Estado. Essas mães não relataram apenas os fatos de outubro, mas fatos de 2007, 2023, 2024.
Essas mães contam histórias de jovens — alguns envolvidos com criminalidade, outros não — e de um mau trato às mães que buscam justiça, como a estigmatização delas como “criadoras de delinquentes”, como pessoas que não mereceriam verdade ou justiça, ou como pessoas que simplesmente não teriam direito à dignidade para seus filhos.
Como foi a conversa com o governador do Rio de Janeiro Cláudio Castro sobre a investigação da CIDH?
Acho que o governador tem uma perspectiva de ter um marco de segurança e de garantir segurança a partir do ponto de vista da obrigação estatal. Mas também acredito que ele entende que há fatos que precisam ser investigados. Ele nos disse que teremos acesso e transparência em todos os questionamentos que fizermos posteriormente. Para a Comissão isso é importante, que uma autoridade nos dê garantia de acesso à informação. Por enquanto, ainda não encaminhamos as perguntas. Com o encerramento da conversa com as famílias, nós vamos solicitar as informações.
Vocês obtêm dados, vídeos, esse tipo de material do governo, ou é uma investigação mais baseada em perguntas ao Estado?
É uma investigação baseada em perguntas ao Estado. Em outras jurisdições, já pedimos, por exemplo, fotografias de medicina legal, perícias de medicina legal. Mas toda essa informação técnica geralmente vem do Estado, a não ser que alguma organização da sociedade civil faça perícias e possa enviá-las.
Vocês vão solicitar essas perícias ao Estado brasileiro?
Sim.
Há algum grupo independente realizando perícias para oferecer a vocês?
Por enquanto, algumas organizações dizem que gostariam de ter um grupo independente, mas ainda não o formaram. Há uma intenção, mas ainda não é algo concreto.
Quando essa investigação deve ser concluída?
Esperamos que nas próximas semanas possamos divulgar algumas conclusões preliminares. Gostaríamos que fosse até o fim do ano, mas precisamos respeitar o processo do Estado de fornecer todas as informações. Seria irresponsável publicar um informe sem esperar a informação estatal.
Também nos colocamos à disposição para que as organizações nos enviem informações que possam aprofundar o entendimento dos fatos.
Quantas famílias foram ouvidas nesta visita no Complexo da Penha?
Poucas. Apenas sete familiares. Temos outro colega que estava tomando depoimentos na Defensoria, não necessariamente sobre esses fatos, mas sobre outros. A gente entende que, em uma situação como essa, as pessoas podem ter medo de falar, de se expor, de serem identificadas.
Ainda assim, não é porque são poucos os testemunhos que eles deixam de formar um relato, especialmente quando comparados ao que dizem organizações da sociedade civil, acadêmicos e agentes do Estado.
E como estava o clima na favela? Como foi a chegada da equipe?
Entramos na favela com pessoas da própria comunidade, que nos permitiram a entrada e nos levaram ao local onde nos reuniríamos. É um lugar da periferia, com serviços muito diferentes dos que vemos neste lado da cidade (a Zona Sul, onde ocorreu a entrevista), com outro tipo de asfalto, outra lógica de concentração de pessoas. É um lugar de marginalidade, onde as pessoas vivem na pobreza e, muitas vezes, prestam serviços para os lugares que vemos ao redor.
Qual a importância desta investigação para o Brasil e a América Latina?
A Comissão Interamericana, quando vem a um país, vem porque o Estado — as altas autoridades — aceita nossa presença. E isso sempre é algo a agradecer. Quando um Estado permite o escrutínio internacional em momentos complexos, sem clareza dos fatos, com informações confusas, ele demonstra compromisso com a democracia, mesmo quando sabe que receberá críticas duras.
Quais medidas serão tomadas a partir de agora?
Mais do que a partir de agora, é importante lembrar que o Estado brasileiro já foi condenado duas vezes pela Corte Interamericana por fatos similares — o caso Nova Brasília e o caso de Acari.
As medidas das sentenças incluem formas de controle das polícias durante operações, garantir câmeras corporais, garantir treinamento, garantir transparência no acesso à informação e garantir algo que ainda não ocorreu: a independência do Instituto Médico-Legal em relação às forças policiais. E é para esse caminho que voltaremos a apontar.
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