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Dos 9,5 mil presos monitorados no Rio com tornozeleiras eletrônicas, apenas 276 violaram o equipamento

A maioria dos monitorados, 8.031, cumpre prisão domiciliar. Outros 803 respondem a medidas cautelares, e 699 são acompanhados por determinação da Lei Maria da Penha

Agência O Globo - 26/11/2025
Dos 9,5 mil presos monitorados no Rio com tornozeleiras eletrônicas, apenas 276 violaram o equipamento

A tentativa do ex-presidente Jair Bolsonaro de violar a tornozeleira eletrônica, no último sábado, reacendeu o debate sobre o dispositivo adotado pela Justiça como alternativa ao regime fechado. Apesar de a atitude do ex-presidente sugerir uma fragilidade do sistema, os números não a corroboram. No Rio de Janeiro, por exemplo, segundo a Secretaria estadual de Administração Penitenciária (Seap), foram registradas este ano (até setembro) 276 violações entre os 9.533 monitorados — o equivalente a 2,8% do total.

Vereador preso em operação contra TCP

Com medo de envenenamento,

— A taxa de evasão das pessoas monitoradas é muito baixa. Fala-se muito disso, mas, estatisticamente, esses casos são irrisórios diante da importância do benefício para a progressão penal. Casos de rompimento viram manchete, justificam propostas de endurecimento. Mas, quando entramos nos dados, vemos que é algo residual — diz o cientista social Ricardo Campello.

A maioria dos monitorados, 8.031, cumpre prisão domiciliar. Outros 803 respondem a medidas cautelares, e 699 são acompanhados por determinação da Lei Maria da Penha. Esse número acompanha uma mudança no perfil da execução penal: há mais condenados fora dos muros, mas também pressão por respostas mais punitivas.

O retrato do uso das tornozeleiras inclui indicadores positivos. Do total de monitorados, 1.225 pessoas — cerca de 15% — possuem emprego formal ou participam de programas de ressocialização. E, ao contrário de outros momentos, informa a Seap, hoje não há déficit de equipamentos nem aparelhos fora de operação.

'Só percebi que tinha tomado um tiro quando cheguei em casa',

O cientista social alerta, porém, que a expansão do monitoramento eletrônico não veio acompanhada de investimentos equivalentes em políticas públicas que permitam romper o ciclo da reincidência.

Falta de políticas públicas

De acordo com Campello, o sistema penal se expandiu, mas as políticas sociais não:

— Quem cumpre pena volta para uma vida marcada pelo estigma, pelo rompimento de vínculos e pela falta de trabalho e de renda. Sem políticas públicas fortes, continuamos produzindo um sistema punitivo cada vez maior, mas não mais eficaz.

Todos os meses, milhares de processos chegam às mesas dos dez juízes Vara de Execuções Penais (VEP). Eles são os responsáveis por decidir o futuro de quem já foi condenado: se pode progredir de regime, trabalhar fora do presídio, visitar a família em datas específicas ou se deve permanecer atrás das grades.

Operação contra o TCP na Baixada

Segundo o juiz Rafael Estrela, cada magistrado analisa, em média, 50 processos por dia. As decisões, amparadas na Lei de Execução Penal, costumam ser alvo de críticas nas redes sociais quando envolvem benefícios a presos.

— Antes, a crítica era mais restrita e agora se espalha com muito mais facilidade. Você concede um benefício previsto em lei, isso vai parar numa rede social, alguém recorta, tira do contexto, viraliza e acontecem linchamentos virtuais por conceder direitos às pessoas — afirma Estrela.

A pressão aumenta sempre que as decisões envolvem presos de grande repercussão ou crimes violentos. O magistrado diz que, apesar disso, o trabalho segue limitado ao que está previsto na legislação.

Alfabetizado no cárcere

A história de João Nascimento dos Santos, de 55 anos, é um exemplo das brechas que surgem quando algum tipo de suporte externo aparece. Ele passou anos no regime fechado até obter a progressão para a liberdade monitorada. Analfabeto ao entrar no sistema, aprendeu a ler e escrever na prisão. Conta que, no início, não conseguia enxergar alternativa ao ambiente que o cercava no cárcere.

— Dentro do cárcere, você só ouve falar de crime. Quando você sai por bom comportamento e algumas oportunidades aparecem, você consegue encarar a vida de outra maneira — diz.

Saiba quem é o

A mudança de direção veio quando ingressou no Replantando Vidas, programa da Cedae voltado à ressocialização. Foi ali que retomou uma rotina de trabalho e aprendeu funções básicas. Antes da prisão, João admite que via com desconfiança quem usava tornozeleira eletrônica, algo que hoje faz parte da sua própria realidade.

— Eu não entendia. Hoje eu vejo diferente. Tinha preconceito. Mas entendi que, com as oportunidades certas, muita gente consegue se recuperar — conta.

Daniel Lemos, de 36 anos, viveu processo semelhante. Condenado em 2007 a 29 anos de prisão por um homicídio, ele cumpriu 12 anos no regime fechado antes de progredir para o semiaberto, depois para a monitoração eletrônica e, por fim, para a liberdade condicional. Dentro da unidade prisional, começou a trabalhar em tarefas de manutenção, capina e pequenos serviços. Relata que foi nesse período que reconheceu a possibilidade real de reorganizar a própria vida:

— Foi ali que comecei a entender que eu podia construir outra vida. As chances que eu tive nesse trabalho foram fundamentais. A transformação não foi só profissional, foi de vida.

Governador envia

Para Campello, o desafio é enfrentar a distância entre o discurso de ressocialização e a prática. Ele afirma que insistir apenas em respostas punitivas não reduz a criminalidade e tampouco fortalece a reinserção social. A reconstrução de trajetórias, diz, exige olhar para políticas de longo prazo, com investimentos em educação, emprego, moradia e presença contínua do Estado nos territórios.

— Quando o Estado oferece caminhos concretos, histórias como as de João e Daniel deixam de ser exceções. Essa é a diferença entre um país que investe em punição e um que investe em futuro — afirma.

*Estagiário sob supervisão de Daniel Biasetto