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Relatório da PM mostra que CV atua em 70 das 92 cidades do estado do Rio; mais de mil comunidades estão sob domínio da facção

Em ofício enviado ao comando-geral da PM, o setor jurídico de um provedor de internet informou relatou a perda de quase 20 mil assinantes para “provedores ligados diretamente ao Comando Vermelho”

Agência O Globo - 09/11/2025
Relatório da PM mostra que CV atua em 70 das 92 cidades do estado do Rio; mais de mil comunidades estão sob domínio da facção
Foto: © telegram SputnikBrasil / Acessar o banco de imagens

Um empresário tenta driblar o baque da perda de 20 mil assinantes em uma só cidade da Região Metropolitana para o que diz ser o maior provedor de internet do estado: o CVNet. No Rio, vizinha do Morro dos Macacos, uma aposentada constata o aumento dos viciados em crack dormindo nas calçadas de Vila Isabel este ano, desde que a facção mais antiga do Rio se impôs na área. A megaoperação da polícia, deflagrada no fim do mês passado, escancarou a dimensão do poder armado do Comando Vermelho em um dos principais QGs da facção. Os complexos do Alemão e da Penha, no entanto, representam uma pequena fatia do domínio da quadrilha. Esse grupo criminoso já está disseminado em 70 dos 92 municípios fluminenses (76%), segundo relatório reservado do setor de inteligência da Polícia Militar.

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'Ninguém nasce traficante':

Na ação de 28 de outubro, os policiais enfrentaram forte resistência dos traficantes. O contra-ataque respigou no asfalto, com ônibus servindo de barricada e a população tendo o seu direito de ir e vir cerceado. Essa influência do grupo criminoso — e até um controle — não se restringe a comunidades, sub-bairros e condomínios dominados por bandidos, estendendo-se para o entorno.

Isolado em 36 municípios

O levantamento feito pela PM aponta todas as comunidades em que há atuação de grupos criminosos no estado de forma estruturada. Em 36 cidades, o CV atua isoladamente, sem a presença de outra facção. E só 15 municípios não têm o domínio consolidado de uma grupo criminoso.

Dos 1.648 locais mapeados, 1.036 (62,8%) são controlados pelo CV; 340 (20,6% ) pelo TCP; 229 (13,9%) pela milícia; e 43 (2,6%) pelo ADA. Mas, como há muitas disputas territoriais, esses dados precisam ser constantemente atualizados e, de acordo com o subsecretário de Inteligência da Secretaria de Polícia Militar, coronel Uirá do Nascimento Ferreira, só são inseridos no documento após o grupo se consolidar no local. A Carobinha, em Campo Grande, por exemplo, ocupada na semana passada, ainda não consta nessa estatística.

De acordo com o secretário de Polícia Civil do Rio, Felipe Curi, foram as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) que contribuíram para a expansão da atuação de facções do tráfico, antes concentrado na capital fluminense:

— O que aconteceu após as UPPs foi o espalhamento dos traficantes por todo o estado. Paralelamente, o CV entendeu que a droga não é mais o negócio mais rentável. Hoje, o tráfico representa de 10% a 15% do faturamento da facção. Eles passaram a explorar economicamente os territórios, replicando atividades típicas das milícias. A prioridade passou a ser gerar receita com gás, luz, água, internet, transporte alternativo e extorsão, impondo o terror à população local.

Mas o CV também se espalhou pelo país: já está em 25 dos 27 estados. Embora considere o combate à facção um desafio, o coronel Uirá acha possível a retomada desses territórios pelo governo, com inteligência e estratégia. Ele tem explicações para o crescimento da facção:

— O CV é a primeira facção do Brasil e influenciou praticamente todas as facções no território nacional.

'Nossos apartamentos não valem mais nada'

Depois de um ano de confrontos que deixaram os moradores do Morro dos Macacos, em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio, sob fogo cruzado, o CV conseguiu se consolidar na comunidade. Uma moradora da Rua Silva Pinto, no entorno dos Macacos, não vê saída a não ser conviver com o medo:

— No Dia das Mães, eu e meus filhos tivemos que almoçar dentro do meu quarto, único lugar seguro quando há tiroteio. Na garagem do meu prédio, sempre há balas no chão. Penso em sair todos os dias daqui. Mas meu apartamento é próprio. Como vou vender? Quem vai querer comprar? Nossos apartamentos não valem nada hoje.

Este ano, além dos Macacos, o CV tomou do TCP (mesmo que ainda o controle não esteja consolidado) o Campinho e o Fubá (Cascadura), o Morro do Divino (Praça Seca), o Gogó da Ema (Belford Roxo), Maria Joaquina (Búzios); e Fazenda da Barra 2 (Resende). Em 2024, na Zona Sudoeste, deixaram de ser controladas por milícia e viraram CV: Gardênia azul (Jacarepaguá), Cesar Maia (Vargem Pequena), Coroado (Vargem Pequena) e Fontela (Vargem pequena) e Jardim Bangu.

Megaoperação no Rio:

Uma moradora do Itanhangá diz que a atuação do CV em comunidades da região assusta e desvaloriza os imóveis do bairro conhecido por residências de alto padrão em meio ao verde. Ela relata que a facção tenta se apropriar do fornecimento de alguns serviços para além das favelas:

— Eles estão tentando vender gás de cozinha deles nos condomínios que ficam foras das favelas, inclusive atuam para impedir que outros façam esse serviço. O mesmo com a questão de internet. Teve até uma vez, meses atrás, que um batalhão da PM precisou dar cobertura para a companhia atuar — contou ela.

Em Ramos, na vizinhança do Morro do Adeus — última área do Alemão que passou do TCP para o CV — um morador diz que precisou se render a internet do tráfico:

— O meu prédio ainda tem uma opção de internet legalizada, mas a maioria não tem. Hoje, tenho duas “internets”. Instalei a deles, porque a legalizada ficou quase duas semanas inoperante. Até pensei que não iria voltar mais — contou.

Ainda segundo o secretário de Polícia Civil, o foco do CV na exploração econômica dos territórios fez com que a facção investisse ainda mais na expansão de suas áreas de atuação nos últimos quatro anos, o que resultou no aumento da receita e da renda do grupo.

— Com essa mudança de tática, voltada ao domínio territorial e econômico, é natural que o poderio financeiro da facção tenha crescido de forma expressiva. Não à toa, eles investiram fortemente na tomada de áreas na região da Grande Jacarepaguá, na Zona Oeste. Eles perceberam o potencial econômico da região — completou o secretário.

Uma moradora do Itanhangá, que não quis se identificar, contou que a atuação do CV em comunidades da região assusta os moradores e desvaloriza os imóveis do bairro de classe alta, que é conhecido por residências de alto padrão em meio ao verde. Ela também relatou que constantemente integrantes da facção tentam se apropriar do fornecimento de alguns serviços para além das favelas.

Barricadas: 50% a mais de relatos

Um retrato da ousadia dos bandidos são as barricadas que instalam nos acessos e dentro de comunidades sob seu domínio. De acordo com a PM, este ano, até outubro, foram 4.400 toneladas retiradas e 2.300 ruas desobstruídas.

Os relatos sobre barricadas ao serviço Disque Denúncia cresceram 50,5% de janeiro a outubro deste ano em relação a igual período de 2024: passaram de 6.908 para 10.393. São Gonçalo, majoritariamente controlada pelo CV, teve 34,12% das denúncias feitas em 2025, seguida de Rio e São João de Meriti. Hoje campeã, a cidade de São Gonçalo era terceira colocada em 2024, perdendo para Rio e São João de Meriti.

É em São Gonçalo que o representante de um provedor de internet relatou, sob condição de anonimato, que a empresa consegue atender, sem sofrer represálias, apenas 25% do território municipal. A vizinha Niterói também enfrenta um problema semelhante. Segundo o empresário, em aproximadamente 45% do território os funcionários não podem realizar atividades.

Falta de profissionais

Em ofício enviado ao comando-geral da PM, o setor jurídico da empresa informou que, somente em uma cidade do Leste Fluminense, sua área de atuação caiu de 90% para 30%, incluindo locais onde os veículos da companhia não podem sequer transitar. O advogado do provedor também relatou a perda de quase 20 mil assinantes para “provedores ligados diretamente ao Comando Vermelho”.

— Eu não perdi assinantes para a concorrência, perdi todos para o maior provedor do Rio, que é o CVNet. Além disso, lido constantemente com a falta de profissionais, porque toda vez que ocorre um episódio de violência, perco técnicos. Já tive funcionário ameaçado de morte em casa, com arma apontada para a cabeça, afastado depois de ser cercado por traficantes e desenvolver estresse pós-traumático

Além do risco aos profissionais, ele ressalta outros fatores que dificultam o trabalho, especialmente por causa da extensão dos territórios conflagrados no Estado do Rio. As dificuldades vão desde a resistência dos próprios funcionários em registrar denúncias — por morarem em áreas dominadas — até a escolha de rotas de manutenção e questões para contratar seguro. Ele contou que a empresa dispõe de um programa de inteligência que define as melhores rotas de serviço, economizando cerca de 20% de combustível, mas que essa funcionalidade não pode ser utilizada no Rio.

— Esse software, no Rio de Janeiro, não serve para nada porque os carros não podem passar por diversos bairros. A principal função dele se torna inútil. E há outro agravante: tenho funcionário que mora em área do Terceiro Comando e não pode atender na área do CV, ou vice-versa. Essa é a realidade do Rio de Janeiro. Ela retira nossa competitividade num nível difícil de explicar. — pontua.

Rumo ao interior pacato

Na pacata cidade de Paulo de Frontin, na Região Centro-Sul Fluminense, policiais já identificaram a influência do CV em alguns territórios. Porém, o município ainda consta entre os poucos onde não há controle de grupos criminosos, conforme o mapa da PM.

Com uma população de pouco mais de 7 mil habitantes, segundo o IBGE, Paulo de Frontin faz divisa com Paracambi e Miguel Pereira, onde a facção possui uma estrutura consolidada. De acordo com uma moradora, criminosos saem dessas cidades e tentam se estabelecer em Paulo de Frontin. Ela contou que os habitantes sempre viveram tranquilos, dormindo com janelas e portas abertas, mas que já não se sentem seguros para isso:

— Nós percebemos que começaram a aparecer pessoas diferentes na cidade, sempre se instalando em bairros mais afastados do centro, como Morro Azul, Sossego e Sacra Família. Depois disso, alguns locais passaram a ser conhecidos como áreas de “difícil acesso” e ter registros de furtos, venda de drogas e uso de armas. Isso não existia aqui.

De acordo com outro morador, os criminosos não possuem o controle territorial de regiões do município, mas alguns traficantes já foram presos ao tentar se estabelecer em determinadas áreas:

— Eles ainda não ocupam nenhuma região, mas já tentaram se fixar. Como o município é pequeno e parte dos policiais reside nas proximidades, eles conseguem agir rapidamente para evitar que elementos de fora se estabeleçam aqui. Eles até atuam na venda de drogas, mas ainda não há domínio territorial. Não exploram gás nem internet.

'Crescimento contínuo do CV'

Para Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), que acompanha o avanço dos grupos criminosos há anos, o Leste Fluminense é a região do estado onde o Comando Vermelho tem mais tem influência sobre o entorno das comunidades.

Hirata lembra que 2023 foi o ano em que o CV passou a controlar mais áreas no estado desde 2017. No Mapa dos Grupos Armados de 2024 (Geni/Fogo Cruzado, com base em 2023), o CV já dominava 51,9% dos territórios controlados por criminosos na Região Metropolitana do Rio. Um crescimento que continuou ao longo de 2024.

— O Comando Vermelho, ao contrário das milícias, tem um crescimento que é contínuo ao longo de todo o período — diz Hirata, que prefere não arriscar sobre o futuro da Zona Oeste, majoritariamente controlada por milícias: — Os dois grupos são poderosos. E difícil prever o futuro, não são favas contadas o CV controlar a Zona Oeste. As milícias se instalaram lá há muito tempo, muitas vezes desde o início de alguns bairros. Não é simples para o CV tomar a Zona Oeste. No caso da Zona Sudoeste, foi construído pouco a pouco um corredor que juntava vários morros sob o controle do CV. Existe uma logística necessária para fazer isso tudo.