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Fuzis fantasmas abastecem o terror do CV do Rio: mais da metade das armas de guerra apreendidas em megaoperação era montada clandestinamente

Agência O Globo - 02/11/2025
Fuzis fantasmas abastecem o terror do CV do Rio: mais da metade das armas de guerra apreendidas em megaoperação era montada clandestinamente
Fuzis fantasmas abastecem o terror do CV do Rio: mais da metade das armas de guerra apreendidas em megaoperação era montada clandestinamente - Foto: Reprodução / Agência Brasil

Dos 93 fuzis apreendidos na operação mais letal da história do Rio, nos complexos do Alemão e da Penha, ao menos metade é de armas conhecidas no meio policial como “fantasmas”. São imitações de armamentos originais fabricadas de forma clandestina, com peças de diferentes origens — muitas delas produzidas em impressoras 3D capazes de processar metal. Entre os fuzis “fantasmas” encontrados pelas forças de segurança nos conjuntos de favelas, há falsificações de modelos de pelo menos duas fabricantes: a alemã Heckler & Koch (HK) e a norte-americana Colt. As inscrições que remetem às marcas, no entanto, são feitas com tinta — ao contrário das originais, gravadas diretamente no corpo da arma — ou estão fora dos padrões autênticos.

Quem dita torturas, o especialista em 'propinas' e o general da guerra:

Longe, mas perto:

'Solta o moleque':

Esse tipo de armamento — que não tem qualquer registro formal ou número de série, o que o torna praticamente impossível de rastrear — se alastrou pelo mercado criminal do Rio em menos de uma década. Dados do Instituto Sou da Paz obtidos com exclusividade pelo GLOBO revelam que, em quatro anos, as apreensões de fuzis sem marcas, característica dos “fantasmas”, triplicaram no estado: em 2020, eram 108; em 2023, saltaram para 307 — metade dos 610 retirados dos criminosos. Fontes da inteligência das polícias estimam que cerca de um terço dos mil fuzis ainda em circulação no Alemão e na Penha sejam “fantasmas”.

Via-crúcis no IML:

Nesses dois complexos, nas apreensões da operação da última terça-feira, além dos fuzis montados com peças contrabandeadas ou adquiridas legalmente na internet, há armamento com origem em países como Venezuela, Argentina, Peru, Bélgica, Rússia, Alemanha e Brasil, assim como exemplares desviados das Forças Armadas. Ontem, a Polícia Civil do Rio revisou o número de armas retiradas das mãos de traficantes do CV nessas favelas: de 118 para 120, com dois fuzis a mais do que os 91 anunciados antes. O prejuízo estimado ao crime organizado é de R$ 12,8 milhões, segundo levantamento da Coordenadoria de Fiscalização de Armas e Explosivos (CFAE).

Fachada de marcenaria

Quanto aos “fantasmas”, a primeira apreensão em larga escala desse tipo de armamento no Rio remonta a janeiro de 2018, quando o então sargento do Exército Renato Borges Maciel foi preso em flagrante trazendo 18 deles para o estado. Na ocasião, Maciel foi abordado por agentes da Polícia Rodoviária Federal e da Polícia Civil na Rodovia Presidente Dutra. O militar trouxe as armas escondidas no porta-malas desde Foz do Iguaçu, no Paraná, onde era lotado. Como a Tríplice Fronteira era a origem de quase todos os fuzis “fantasmas” apreendidos entre 2018 e 2020, as polícias Civil e Federal concluíram que, inicialmente, as primeiras armas do tipo eram montadas por armeiros no Paraguai e entravam no país de forma clandestina.

Mas, em outubro de 2023, investigação da PF descortinou uma mudança no mercado das “fantasmas”: pela primeira vez, uma fábrica clandestina de fuzis com capacidade industrial foi descoberta no país, em Belo Horizonte. Funcionava sob a fachada de uma marcenaria, usava equipamentos milionários de alta precisão — como uma impressora 3D do tipo CNC, capaz de reproduzir peças metálicas originais — e atendia o CV e outros grupos criminosos do Rio. No mesmo dia em que a fábrica foi fechada, seu dono, identificado como Silas Diniz Carvalho, foi preso em uma mansão alugada na Barra, onde foram apreendidos 47 fuzis “fantasmas”.

Mesmo condenado em 2024 a uma pena de mais de 12 anos, Silas conseguiu manter o esquema, segundo a PF. Em prisão domiciliar, ele é acusado de transferir a operação para outra fábrica, ainda mais sofisticada, em Santa Bárbara d’Oeste, em São Paulo. A nova planta industrial, fechada por agentes federais em agosto passado, podia produzir mais de 3,5 mil fuzis por ano.

— O investimento inicial para abrir uma fábrica desse porte é alto, ao menos R$ 3 milhões. Mas, do ponto de vista financeiro, compensa para o criminoso, que não precisa comprar peças de fuzil originais, em dólar, e não precisa arcar com os custos com corrupção de agentes públicos para transportar as armas para dentro do país — explica Bruno Langeani, especialista em controle de armas.

Fábricas artesanais que produzem armas “fantasmas” em escala menor também se proliferam. É o caso da oficina de fuzis da milícia encontrada pela PF em Rio das Pedras, na Zona Sudoeste do Rio, em agosto passado. Os agentes federais descobriram que os paramilitares importam peças dos Estados Unidos e as juntam com outras partes de polímero feitas em impressoras 3D.

'Crueldade':

A partir de investigações das polícias Civil e Federal, O GLOBO identificou um elo entre as fábricas clandestinas e organizações criminosas do Rio abastecidas pela quadrilha. Durante a campana feita em frente à mansão onde Carvalho, o dono do empreendimento, foi preso em 2023, agentes federais perceberam que um homem chegou à casa a bordo de um carro clonado, pegou uma mala dentro do imóvel, colocou-a no carro e deixou o local. Ele conseguiu escapar da prisão, mas Carvalho, em depoimento à Justiça, expôs sua identidade: era ex-sargento da PM Ricardo Rangel da Silva, apontado pela polícia como um dos maiores traficantes de armas do Rio.

Venda para milicianos

Os laços do ex-PM com o CV eram conhecidos pelas autoridades desde julho de 2022, quando ele foi preso levando uma carga de cocaína para o Morro do Limão, em Cabo Frio, controlado pela facção. Condenado à prisão, Rangel acabou expulso da PM e, segundo outras investigações, diversificou sua clientela. Arquivos extraídos da conta do WhatsApp do PM Thiago Alves Benício, acusado de integrar o grupo de pistoleiros a serviço do bicheiro Adilson Oliveira Coutinho Filho, o Adilsinho, revelaram que Rangel também vendia armas para milicianos e quadrilhas a serviço de contraventores.

“Qual é, mano, o irmão pediu para perguntar se conhece esse polícia aí”, perguntou um interlocutor a Benício em dezembro de 2023, depois de enviar uma fotografia de Rangel. Benício respondeu que perguntaria ao ex-cabo da PM Rafael do Nascimento Dutra, o Sem Alma, apontado como chefe do bando de matadores de Adilsinho. Minutos depois, a resposta chegou: “Conheço ele, sim. Trabalhou comigo no GAT (Grupamento de Ações Táticas). Já até levou pistola pra mim, já me mostrou fuzil. Ele traz uns bagulhos do Paraguai”.

Com drones e câmeras:

O interlocutor explicou o motivo da pergunta: “Ele sumiu com dez bicos dos amigos aqui, falou que perdeu pra federal”. Benício encerrou a conversa com um áudio, acrescentando que Rangel já havia vendido dois fuzis para a milícia de Luiz Antônio da Silva Braga, o Zinho. No início deste ano, Rangel foi condenado pela Justiça Federal a seis anos de prisão por tráfico de armas. Hoje, também é investigado por fornecer fuzis “fantasmas” a criminosos fluminenses. O GLOBO não conseguiu contato com a defesa do ex-PM.

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Além de inscrições de marcas conhecidas fora do padrão original, há outras maneiras de reconhecer os fuzis “fantasmas”. Alguns, como 11 exemplares apreendidos pela PF em janeiro de 2025, na Região Serrana do Rio, que tinham o Complexo da Penha como destino, exibem inscrições com erros de grafia, como “carabine” em vez de “carbine” (carabina, em inglês) e “Hardfort” em vez de “Hartford”, cidade-sede da Colt.

— As armas “fantasmas” têm o mesmo poder letal de um fuzil autêntico. Mas, por não terem tanta qualidade, não devem ter a mesma durabilidade — diz o delegado Vinícius Domingos, da CFAE.