Política

Acesso de cidadão a pistola, que tinha sido liberada por Bolsonaro, gera impasse às vésperas de novo decreto de Lula sobre armas

Modelo 9 mm foi o mais comprado pela categoria nos últimos anos, segundo dados do recadastramento; texto está na reta final de revisão e deve ser anunciado na sexta-feira

Agência O Globo - GLOBO 19/07/2023
Acesso de cidadão a pistola, que tinha sido liberada por Bolsonaro, gera impasse às vésperas de novo decreto de Lula sobre armas

Após seis meses de discussão e pressão de parlamentares armamentistas pela manutenção das regras atuais, o novo decreto que vai regulamentar o mercado de armas de fogo está em fase final de discussão no governo federal. Mas o ponto visto como mais sensível pelo Planalto ainda está em aberto e opõe os ministros José Múcio (Defesa) e Flávio Dino (Justiça e Segurança Pública): a retomada da restrição do uso de pistola 9 mm.

Leia: Documentos mostram que CACs armados se articularam em atos antidemocráticos após derrota de Bolsonaro

O recadastramento das armas posto em prática pelo governo Lula constatou que o modelo 9 mm foi o mais comprado por CACs nos últimos anos. Sendo a pistola banida ou liberada, uma das ideias do governo é garantir a posse e o uso dos "acervos adquiridos sob a regra anterior", avaliando ser difícil retomar as milhares de armas disseminadas durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).

A precisão do disparo, o recuo ínfimo e a maior capacidade de tiros num único carregador tornaram a 9 mm a favorita dos CACs. Do outro lado, especialistas defendem a retirada desse armamento de circulação por seu alto poder de “transfixação”, ou seja, sua capacidade de atravessar um alvo e atingir duas pessoas com um único disparo. Segundo eles, a 9 mm é mais perigosa e deveria ser realocada dos CACs para os profissionais das forças de segurança.

O decreto deve ser assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na sexta-feira — no dia anterior, deve ocorrer uma reunião com Múcio e Dino para resolver o impasse. A previsão é de o evento contar com outros anúncios relacionados à segurança pública, como a ampliação de estruturas contra organizações criminosas e das operações policiais integradas com os estados e maior reforço na segurança da Amazônia e das fronteiras.

O Ministério da Defesa tem se posicionado nas reuniões para que não seja alterado esse item nem ampliada a restrição ao uso de pistolas, ponto que conta com apoio do Exército, que teme prejuízo em médio prazo e eventual desemprego que a mudança possa gerar na indústria do setor.

Em entrevista ao SBT News nesta segunda-feira, Dino afirmou que atiradores de nível 3, que participam de competições internacionais e olímpicas, devem ter acesso limitado a armamento de uso restrito para participar desses eventos. E declarou que "certas pistolas", que eram de uso restrito e foram permitidas durante o governo Bolsonaro, voltarão à restrição anterior.

A minuta de decreto que saiu Ministério da Justiça e Segurança Pública em junho prevê a retomada dos parâmetros de 2018, quando havia restrição para uso de pistola 9 mm — a decisão final caberá a Lula, que volta de viagem na quinta-feira. Uma versão do decreto já vem sendo analisada pela Secretaria de Assuntos Jurídicos (SAJ), na Casa Civil, mas não chegou até o órgão a definição específica sobre qual será posicionamento do governo sobre eventual restrição ao uso de pistola de 9 mm.

Em março deste ano, Dino recebeu uma comitiva com quase 30 deputados federais para discutir os principais pontos do decreto. Um dos integrantes do grupo, o deputado federal Marcos Pollon (PL-MS) reivindicou pessoalmente ao ministro a manutenção da classificação atual de calibres — de uso permitido e restrito —, uma das principais conquistas dos armamentistas no governo Bolsonaro. Ele teme a quebra do mercado se uma medida considerada brusca for tomada.

— Pedimos para manter os calibres, porque é importante. A legislação alterou completamente as relações comerciais. Se restringir tudo, quebra todo segmento. Ele se comprometeu a não extinguir o segmento e respeitar os princípios norteadores do estado democrático de direito. Se for feito isso, está razoável. Bom não dá para ficar, porque vai ser extremamente restritivo, mas aceitável — diz Pollon.

Durante a gestão Bolsonaro, facilitações na lei alteraram o potencial do armamento permitido aos Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs). Calibres antes permitidos apenas às polícias ou às Forças Armadas passaram a ficar disponíveis para qualquer brasileiro ter em casa, como as pistolas 9 mm e as carabinas semi-automáticas .40.

Criador da Associação Nacional Movimento Proarmas (Ampa) e um dos principais militantes da causa armamentista, Pollon diz que, a depender do conteúdo do decreto, os deputados pretendem apresentar um projeto de lei complementar (PDL) para questioná-lo. Diante da recente declaração de Dino à Bandnews de que o decreto será "ponderado", Pollon comemora.

— Excelente. Se for um decreto ponderado, ficamos muito felizes. Acabou a eleição, é hora de descer do palanque. Temos de ter um projeto de governo, superar as diferenças partidárias. Existe um segmento da sociedade relevante que gosta de praticar tiro esportivo. Uma medida radical é uma medida eleitoreira. Isso não tem espaço numa democracia — afirma.

Proposta do Ministério da Justiça enviada em maio à Casa Civil

Defesa pessoal

Até 2 armas de uso permitido, com comprovação de efetiva necessidade;

Até 50 munições por arma, por ano.

CACs

Caçadores excepcionais

Até 6 armas*, sendo até 4 de uso permitido;

Até 500 munições, por arma, por ano.

*A Polícia Federal poderá autorizar, em caráter excepcional, a aquisição de até 2 armas de fogo de uso restrito e suas respectivas munições, no limite de até 6 mil cartuchos, por ano, para atiradores de nível 3.

Colecionadores

Até 1 arma de cada modelo, tipo, marca, variante, calibre e procedência;

Vedadas as proibidas, automáticas e as longas semiautomáticas de calibre de uso restrito cujo 1º lote de fabricação tenha menos de 70 anos.

Atiradores desportivos

Nível 1

Até 4 armas de fogo de uso permitido;

Até 4 mil cartuchos, por ano;

Até 8 mil cartuchos por arma .22 LR ou SHORT

Nível 2

Até 8 armas de fogo de uso permitido;

Até 10 mil cartuchos, por ano;

Até 16 mil cartuchos, por ano .22 LR ou SHORT

Nível 3

Até 16 armas de fogo, sendo 12 de uso permitido e até 4 de uso restrito*;

Até 20 mil cartuchos, por ano;

Até 32 mil cartuchos por ano .22 LR ou SHORT

*A Polícia Federal poderá autorizar, em caráter excepcional, a aquisição de até quatro armas de fogo de uso restrito e suas respectivas munições, no limite de até 6 mil cartuchos, por ano, para atiradores de nível 3.

Definição de armas de uso permitido e restrito

Retomada dos parâmetros de 2018 para limites de armas curtas (pistolas 9 mm, .40 e .45 ACP voltam a ser de uso restrito);

Armas longas de alma lisa semiautomática passam a ser restritas.

Observações:

Serão garantidas a posse e a possibilidade de utilização dos acervos adquiridos sob a regra anterior, atendidos os critérios da concessão do registro e do apostilamento da atividade;

Previsão de programa de recompra com foco nas armas que eram de uso permitido e passarão a ser de uso restrito.

Porte de trânsito

Autorização concedida pela PF, mediante emissão da guia de tráfego, aos colecionadores, aos atiradores, aos caçadores e aos representantes estrangeiros em competição internacional oficial de tiro realizada no território nacional para transitar com armas de fogo registradas em seus respectivos acervos, devidamente desmuniciadas, em trajeto preestabelecido, por período pré-determinado, e de acordo com a finalidade declarada no correspondente registro.

Autorização

Ficam incluídos os seguintes requisitos de segurança pública na análise para concessão do registro às entidades de tiro desportivo e às empresas de serviço de instrução de tiro:

I — distância superior a um quilômetro em relação a estabelecimentos de ensino, públicos ou privados;

II — cumprimento das condições de uso e armazenamento das armas de fogo utilizadas no estabelecimento; e

III — funcionamento entre 6h e 22h (proibição dos clubes de tiro 24h)

Os estabelecimentos em desconformidade com os itens I e II terão um prazo de 18 meses para adequação.

Caça excepcional

Autorização de abate imprescindível de fauna invasora mediante apresentação de:

a) documento comprobatório da necessidade do abate de fauna invasora, expedido pelo Ibama, indicando ao menos (i) a espécie exógena; (ii) o perímetro abrangido; (iii) a autorização dos proprietários de imóveis localizados no perímetro referido da alínea b; (iv) as pessoas físicas interessadas em executar a caça excepcional; e (v) o prazo certo para o encerramento da atividade;

b) especificação da arma de fogo apropriada para o abate da espécie invasora e do quantitativo de munição necessária à execução do manejo, limitada a duas armas de fogo de uso permitido e seiscentas munições.

Caça de subsistência

Porte de arma de fogo concedido pela PF de:

(i) uma arma portátil de uso permitido, de tiro simples, com um ou dois canos, de alma lisa e de calibre igual ou inferior a dezesseis, desde que o interessado comprove a efetiva necessidade (proposta também retoma art. 6º, § 5º da Lei 10.826/2003)

Validade dos registros de arma de fogo

I — 3 anos para colecionador, atirador desportivo e caçador excepcional;

II — 5 anos para registro concedido para fins de posse e caça de subsistência;

III — 5 anos para as empresas de segurança privada; e

IV — indeterminado para os integrantes da ativa da PF, PRF, polícias penais, polícias civis, polícias da Câmara e Senado, das guardas municipais, da Abin, guardas prisionais, do quadro efetivo do Poder Judiciário e Ministério Público no exercício de funções de segurança, dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, dos auditores fiscais e analistas tributários.

Observação: as empresas de segurança privada e as instituições elencadas em IV deverão realizar avaliação psicológica de seus integrantes para o manuseio de arma de fogo a cada dois anos.

Atividades de caça, tiro desportivo e colecionamento

Polícia Federal passa a centralizar as competências das atividades de caráter civil envolvendo armas e munições, incluindo a definição, padronização, sistematização, normatização e fiscalização de atividades de procedimentos, tais como:

a) Registro e fiscalização de armas de fogo, munições e acessórios, incluindo aqueles dos caçadores excepcionais, atiradores e colecionadores;

b) Registro e fiscalização de entidades de tiro desportivo e de empresas de serviço de instrução de tiro.

Observação: as atividades e procedimentos relativos às armas, munições e acessórios das Forças Armadas, forças auxiliares e do Gabinete de Segurança Institucional (ativos e inativos) seguem sob a responsabilidade do Comando do Exército.