Poder e Governo

Acúmulo de crises expõe disputa de Poderes e desarranjo institucional

Pressões decorrentes de alterações nas regras do orçamento, popularidade de ideias e personagens que desprezam a democracia e a disputa de poder entre instituições levam o país a experimentar a tensão permanente, afirmam especialistas

Agência O Globo - 07/12/2025
Acúmulo de crises expõe disputa de Poderes e desarranjo institucional
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva - Foto: © AP Photo / Eraldo Peres

Em um intervalo menos de 15 dias, o indicado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Supremo Tribunal Federal (STF), Jorge Messias, teve sua sabatina no Senado cancelada em meio a uma crise entre Legislativo e Executivo que sinalizava uma derrota do Planalto em plenário. Na sequência, Gilmar Mendes, ministro da Corte, tornou público o receio de que seus colegas sejam destituídos do cargo e limitou a Lei do Impeachment para dificultar a remoção de magistrados do Supremo. Na semana anterior, os presidentes da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), se uniram para boicotar o evento de Lula para celebrar a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil. O esgarçamento das relações na República, com raízes e motivações distintas, demonstra que o país passa por um momento de estresse institucional.

Em crise com STF:

Tarcísio recebe medalha do Bope e elogia Castro:

O cenário de turbulência tem sido comum nos últimos anos. Segundo especialistas, pressões decorrentes de alterações nas regras do orçamento, a popularidade de ideias e personagens que desprezam a democracia, bem como a disputa de poder entre instituições levam o país a experimentar a tensão permanente.

Freios e contrapesos

Um dos preceitos fundamentais das democracias modernas, a independência e a harmonia de Poderes, se tornou um desafio constante. A instabilidade coloca à prova o sistema de freios e contrapesos previsto na Constituição de 1988 — marco de garantias do período mais longevo de democracia no Brasil.

Autor do termo “presidencialismo de coalizão”, o sociólogo Sergio Abranches avalia que os Três Poderes extrapolam competências.

— Tem uma desordem na relação entre os Poderes no Brasil que precisa ser resolvida. O Congresso invade as atribuições do Executivo, do Judiciário. O Judiciário invade do Legislativo, e o Executivo invade também. O cidadão se perde nessa discussão, porque não é obrigado a ser especialista em Constituição. E fica à mercê dos aventureiros, porque não tem a estabilidade institucional que o regime precisa.

O caso mais recente envolvendo a decisão de Gilmar é sintomático. Para especialistas, o magistrado decidiu agir de forma inadequada ao criar novas regras para tramitação do impeachment e derrubar pontos da legislação.

A motivação, porém, revela outra preocupação institucional. Políticos da oposição comandada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro dão prioridade número um para ter maioria no Senado em 2026 justamente para fazer “uma limpa” no STF.

Há menos de duas semanas, Bolsonaro começou a cumprir pena de prisão por uma tentativa de golpe de Estado, outra face do desarranjo de forças políticas com a institucionalidade.

— A saída passa por recolocar o Supremo no trilho do colegiado e devolver ao processo democrático o que é do processo democrático. Ao mesmo tempo, é importante que o Congresso não reaja no calor do momento, editando PECs punitivas ou reformas estruturais por impulso — avalia Miguel Godoy, professor da UFPR e da UnB.

Professor de Gestão de Políticas Públicas na USP, Pablo Ortellado avalia que decisões recentes de integrantes do Supremo, tomadas sob um caráter de excepcionalidade, vêm se tornando cada vez mais perigosas:

— Não é da natureza de nenhum Poder se autoconter. Uma vez que ele foi autorizado, legitimado a se expandir, é difícil colocar a pasta de dente de volta dentro do tubo. Precisamos condenar esses movimentos.

Na relação entre Supremo e Congresso, as decisões monocráticas, como a de Gilmar, são alvo antigo de reclamações de parlamentares, que já tentaram limitá-las por meio de Propostas de Emendas à Constituição.

Historiadora e professora da Universidade de São Paulo (USP) e de Princeton, Lilia Moritz Schwarcz relembra que a tensão entre os Poderes já ocorreu em outros momentos, inclusive na monarquia. Para ela, contudo, o atual período de conflito é marcado, principalmente, pelo aumento de poder do Congresso.

— É um movimento que vem desde o Eduardo Cunha (como presidente da Câmara) e vai assinalando uma espécie de passagem de um sistema político mais ou menos delimitado pelas instituições de 1988 para um modelo que está muito indefinido e que não foi o resultado de um debate republicano, de um debate público, o que o torna mais incompleto e agrava essa crise política, que é uma crise de representação política — afirma Schwarcz.

Principal exemplo do avanço do Legislativo, as emendas parlamentares representam um dos focos da crise. Em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro, eram de R$ 19 bilhões por ano, em valores já reajustados pela inflação. Cinco anos depois, esse montante mais do que duplicou: em 2025, a previsão é de que o Congresso distribua R$ 51,2 bilhões. Em 2015, no governo Dilma Rousseff, a Constituição foi alterada tornando obrigatória a execução das emendas individuais, em processo que foi avançando nos últimos anos.

O crescimento das emendas diminui a capacidade de investimento do Executivo e fortalece o Congresso.

— Esse processo começa com o processo de desinstitucionalização do Congresso, que aconteceu justamente com presidentes da República fracos, Dilma e Bolsonaro. A reação do Congresso, com a criação das emendas impositivas, por exemplo, ocorre em momentos em que os presidentes não quiseram usar suas prerrogativas legislativas — explica a cientista política e pesquisadora da Universidade de Lisboa, Beatriz Rey.

Retaliação

Nas últimas semanas, a relação de Alcolumbre com o governo se deteriorou após Lula decidir indicar Messias para o Supremo. No dia seguinte, o presidente do Senado — que tinha preferência pelo nome do colega Rodrigo Pacheco (PSD-MG), anunciou a votação de uma “pauta-bomba” para o governo na Casa: a aprovação de benefícios para profissionais de Saúde, com impacto de R$ 100 bilhões em dez anos.

— É um gasto de energia terrível. Um país que tem um problema fiscal grave, fruto de uma rigidez orçamentária terrível, fruto de direitos criados na Constituição que não comportam no orçamento, toda essa necessidade de reformas estruturais, e a gente não consegue direcionar esforços — afirma a economista Zeina Latif.

Também há críticas contra investigações abertas pelo STF, principalmente o inquérito das fake news, que tramita em sigilo desde 2019 e não tem perspectiva de terminar. Na última semana, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que não existe “Judiciário tão forte quanto o do Brasil”.

O cientista político Cláudio Couto, professor da FGV-SP, afirma que cada Poder “testa os limites” e não renuncia ao que conquistou:

— Quem ganhou o poder, acha que pode ganhar ainda mais e começa a agir. E quem perdeu o poder, tenta recuperar o terreno perdido. Os atores ainda estão testando um pouco os limites, até onde dá para ir.