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Eleições na França: Extrema direita ameaça romper 'cordão sanitário' democrático após duas décadas

Embora projeções apontem que partido de Le Pen terá a maior bancada, é possível que nenhuma legenda conquiste maioria absoluta para governar, culminando numa dinâmica de alianças ainda mais complexa

Agência O Globo - GLOBO 07/07/2024
Eleições na França: Extrema direita ameaça romper 'cordão sanitário' democrático após duas décadas

Depois de um primeiro turno histórico, eleitores de 506 distritos franceses voltam às urnas neste domingo para escolher seus representantes ao Parlamento, numa eleição que testará como nunca a capacidade republicana de impedir a ascensão do primeiro governo de extrema direita na França. Embora por mais de duas décadas a união de forças democráticas tenha conseguido afastar o clã Le Pen do Palácio do Eliseu, tudo indica que o "cordão sanitário" para barrar o Reagrupamento Nacional (RN) esteja prestes a se romper, apontam analistas ouvidos pelo O GLOBO.

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Para Thomás Zicman, cientista político da universidade parisiense Sciences Po, as últimas eleições presidenciais já indicavam o enfraquecimento da aliança. Se em 2017 a "barreira republicana" consagrou a vitória do presidente Emmanuel Macron (Renascimento) contra Marine Le Pen (RN) por 66% dos votos, em 2022 a porcentagem caiu para 58% — e ele sequer conseguiu puxar votos suficientes para a sua base formar uma maioria no Parlamento. Agora, mesmo com a desistência de mais de 200 candidaturas para fortalecer a frente de centro-esquerda em alguns distritos, o cálculo político se tornou mais complexo, explica.

— É mais fácil para um eleitor de esquerda se motivar a votar num candidato de centro para bloquear a extrema direita, mas isso não é tão obvio para um eleitor de centro — avalia. — Quando há uma campanha muito grande do centro e da direita para criar equivalências, alegando que os dois lados são igualmente ruins, um pedaço do eleitorado pode sentir mais dificuldade em votar na esquerda ou até prefira votar na extrema direita.

O cordão sanitário também pode potencializar a extrema direita, avalia Alexandre Pires, professor de relações internacionais na Ibmec de São Paulo.

— Agora essa já é uma tática conhecida. Nós não podemos esquecer que as viradas também vão ocorrer a favor do lepenismo. Em duelos com o RN contra candidatos dos Republicanos [direita tradicional] que não abriram mão da candidatura, o eleitor pode fazer um voto estratégico e preferir quem tem mais chances.

Banalização do extremismo

Para especialistas, o avanço da ultradireita na terra do Iluminismo é sintoma de um processo anterior, que une a crescente frustração popular e a normalização da sua agenda no debate público.

— O governo não apresentou soluções para os problemas da população e a extrema direita conseguiu surfar nisso, agora com a roupagem nova do Jordan Bardella, que é um cara jovem, bonito — afirma Igor Lucena, consultor especialista em riscos geopolíticos, em referência ao eurodeputado de 28 anos cotado para premier.

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Para Lucena, a exploração de temas como segurança pública, cujos problemas são frequentemente associados à imigração, e o descontentamento de setores importantes com políticas da União Europeia (UE), como os agricultores com o chamado Green Deal (Pacto Ecológico europeu), foram usados como arma pelo RN para alimentar ideais nacionalistas:

— Não só a França, mas vários países europeus se sentem ameaçados pelo terrorismo, pelo aumento da violência e da imigração ilegal. Além disso, do ponto de vista econômico, muitas decisões tomadas pela UE, principalmente a política agrícola, são encaradas como se a visão europeia estivesse acima dos interesses franceses — aponta, acrescentado: — O nacionalismo exacerbado na França é algo comum: os europeus têm muito mais uma história de nacionalismo do que de integração, que surgiu só nos últimos 70 anos.

Na avaliação de Zicman, há uma "banalização do RN", na qual eleitores diferentes camadas sociais são movidos por um sentimento anti-establishment e pela ideia de que a ultradireita nunca teria sido testada. O que, segundo ele, não é verdade, “porque seus fundadores estavam no poder durante a ocupação nazista e já governaram várias cidades”. Ele também aponta que a classe política tem uma responsabilidade nesse crescimento.

— Os partidos que historicamente governaram o país deram vários passos para a extrema direita querendo conquistar parte do seu eleitorado. Com o aumento dos votos na Frente Nacional [nome anterior do RN] nos anos 1990, Jacques Chirac (1995-2007), de direita, começou a fazer comentários ofensivos aos imigrantes. Quando perguntaram a Jean-Marie Le Pen [fundador da sigla] se ele se preocupava com isso, ele disse que não, porque ajudava a espalhar a sua mensagem e, no fim, o eleitor vai preferir o original — lembra Zicman. — A melhor maneira de ganhar o debate é impor os seus temas.

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O futuro do Parlamento

Uma análise do Grand Continent, publicação do grupo de pesquisa em geopolítica da École Normale, simulou alguns cenários com base nas projeções para este domingo.

Exceto por uma desmobilização completa da frente de centro-esquerda, há grandes chances de a extrema direita não conseguir maioria absoluta, mesmo conquistando a maior bancada. Nesse cenário, a nomeação de Bardella a primeiro-ministro dificilmente pararia de pé.

— O indicado a premier não precisa de voto de confiança, só não pode ter uma moção de censura, ou seja, 289 deputados contra você — explica Zicman ao GLOBO. — Talvez nenhum bloco consiga uma maioria pra derrubar o primeiro-ministro, mas ele também não conseguiria aprovar nada depois .

Por outro lado, o cenário mais otimista para as forças democráticas tampouco garantiria uma margem de manobra. Segundo o Grand Continent, uma união total da esquerda deve conseguir somente metade dos assentos necessários — resultado similar ao previsto para delegação centrista reunida por Macron na última legislatura. Uma coalizão social democrata, excluindo a extrema esquerda da França Insubmissa (LFI, em francês), também seria insuficiente.

— Tendo em vista a derrocada do macronismo, alguns membros do centro podem se aliar ao ciotismo [facção dos Republicanos capitaneada pelo presidente Éric Ciotti, que se uniu ao RN], sem se aliar diretamente à extrema direita, alegando ser necessária uma voz mais moderada no governo — especula Pires.

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Uma grande frente de direita e extrema direita, como a primeira-ministra Giorgia Meloni estabeleceu na Itália, também não é certeza de sucesso. Como em diversos distritos há candidatos dos Republicanos duelando contra o RN, eles precisariam estar dispostos a trair o próprio eleitorado para se unir à legenda de Le Pen.

— O partido vive uma crise de identidade, mas esses políticos eleitos com a bandeira da direita tradicional têm um apego em tentar reconstrui-la — afirma Zicman.

Frente ampla

Restam dois cenários. O primeiro seria construir uma ampla frente nacional, da extrema esquerda à direita tradicional, excluindo o RN. Nesse caso, a maioria absoluta é possível. Contudo, se as divergências dentro da esquerda já são delicadas, ajustar as arestas entre o líder da esquerda radical, Jean-Luc Mélenchon (LFI), e Macron parece ainda mais difícil. Apesar da mobilização pelas desistências, o bloco macronista se negou a abdicar dos seus quadros em disputas contra a LFI.

— O bloco da esquerda é diverso, tem motivos para estarem bravos uns com os outros, porque cada um quer hegemonizar à sua maneira. Matematicamente, eu não vejo muita saída para uma aliança entre o centro e a esquerda. O Macron já disse que a França Insubmissa está fora de questão, e a recíproca é verdadeira — analisa o cientista político. — O melhor dos cenários seria uma grande aliança com o centro, a esquerda e a direita, mas seria um governo sem pé nem cabeça.

O impasse no horizonte ecoa o destino do ex-presidente Alexandre Millerand (1920-1924), forçado a renunciar, há cem anos, após um bloco majoritário rejeitar todos os nomes indicados por ele a primeiro-ministro. Constitucionalmente, nada obrigaria Macron a deixar o cargo, e impeachments são extremamente raros na França. Com mandato até 2027, ele ainda pode, daqui um ano, dissolver a Assembleia Nacional novamente.