Internacional

Vítimas de feminicídio são esquecidas em um cemitério iraquiano

Sem identificação nas lápides, o cemitério de Siwan marca o esquecimento das vítimas de violência de gênero no Iraque, que já passam de um milhão de mulheres e meninas, segundo a ONU

Agência O Globo - EXTRA 04/07/2024
Vítimas de feminicídio são esquecidas em um cemitério iraquiano
Vítimas de feminicídio são esquecidas em um cemitério iraquiano - Foto: Reprodução / internet

No Curdistão iraquiano, as famílias se reúnem tradicionalmente às sextas-feiras para lembrar de um ente querido falecido. No entanto, no cemitério de Siwan, localizado na cidade de Suleimânia, no norte do Iraque, a seção destinada às vítimas de feminicídio raramente é visitada. Dezenas delas repousam neste espaço, sob lápides que, em sua maioria, nem sequer mostram um nome, às vezes apenas um número vinculado às listas do departamento de medicina legal. De uma população de 43 milhões de pessoas, mais de um milhão de mulheres e meninas são ameaçadas pela violência de gênero no Iraque, segundo a ONU.

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— O coveiro as enterra à noite para que os parentes não saibam onde está o túmulo e venham destruí-lo — disse à AFP a advogada feminista Rozkar Ibrahim, 33 anos, no cemitério.

As lápides anônimas tornam vidas de esposas mortas pelo marido violento, de filhas e irmãs assassinadas pelo pai ou irmão que precisava defender a "honra" da família, esquecidas para sempre.

No cemitério de Siwan, a seção de feminicídio abriga mulheres não identificadas de todo o Curdistão, diz Ibrahim à AFP. Ela acrescenta que poderia contar tragédias por horas, como a de uma mulher que se apaixonou, engravidou e tentou fugir do país com o amante e a criança. No entanto, seus parentes os encontraram e os mataram, junto com o bebê.

— Eles estão enterrados aqui — diz a advogada à AFP, que há anos luta pela identificação das lápides anônimas.

'Cultura da impunidade'

O número exato de vítimas enterradas permanece incerto. Mas Othman Saleh, coveiro há 15 anos, afirma ter enterrado cerca de 200 mulheres e adolescentes, algumas com apenas 13 anos.

— Elas foram mortas, queimadas ou estranguladas — diz o homem de 55 anos à AFP.

Em um Iraque predominantemente conservador, a violência contra as mulheres é frequente. De uma população de 43 milhões, mais de um milhão de mulheres e meninas são ameaçadas pela violência de gênero, de acordo com a ONU. No Curdistão autônomo, que quer se apresentar como um oásis de estabilidade e modernidade em um país dilacerado por décadas de conflito, dezenas de feminicídios são registrados todos os anos, embora as autoridades locais tenham adotado uma lei em 2011 que criminaliza a violência doméstica.

Razaw Salihy, pesquisador da Anistia Internacional, admite à AFP que há avanços importantes no campo legislativo, mas alerta para o índice alarmante de feminicídios e mutilações perpetrados contra mulheres e meninas, principalmente nas mãos de parentes do sexo masculino no Curdistão. Ele acrescenta que a "cultura da impunidade" é mantida por uma taxa extremamente baixa de condenações.

'Vida'

Em 2020, Qubad Talabani, vice-primeiro-ministro da região autónoma, proibiu o enterro de qualquer vítima não identificada. Para aqueles que já foram enterrados, sua lápide deveria conter uma inscrição simbólica: "vida". As tragédias, entretanto, continuam.

Em junho, um homem explodiu sua esposa grávida de 17 anos, disse o pai da adolescente, Jiza Jawhar, à AFP. A mãe e a criança foram mortas. O marido foi preso pelas forças de segurança, mas sua família nega as acusações, alegando que a garota cometeu suicídio.

Em 2021, o Curdistão registrou 45 feminicídios em comparação com 25 no ano anterior, de acordo com as últimas estatísticas oficiais. Mas os "crimes de honra" "diminuíram consideravelmente" em 2024, diz Serkut Omar, do Departamento de Combate à Violência contra a Mulher, à AFP.

Em 21 anos de carreira, o diretor do departamento de medicina forense de Suleimânia, Barzan Mohamed, diz à agência de notícias ter visto atrocidades. Nos casos de feminicídio com os quais ele lidou, a maioria das vítimas foi morta com balas, "às vezes com um único tiro, às vezes com até dez tiros", lembra.

— Também vimos casos de estrangulamento, com as mãos ou com uma corda — diz, mencionando também um cadáver queimado que estava quase irreconhecível.