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Em Taiwan, divindade milenar atrai jovens em busca de consolo, sorte e imersão cultural

Na ilha, diversidade religiosa faz parte da identidade democrática, e muitos dos fiéis participantes de uma peregrinação estavam na faixa dos 20 anos

Agência O Globo - GLOBO 03/05/2024
Em Taiwan, divindade milenar atrai jovens em busca de consolo, sorte e imersão cultural
Divindade milenar atrai jovens em busca de consolo, sorte e imersão cultural - Foto: Reprodução/internet

Em meio ao estrondo de fogos de artifício, címbalos e outros instrumentos musicais, um grupo de devotos carregava a estátua de madeira de uma mulher com o rosto sereno. Os fiéis a seguravam no alto de uma liteira decorada com cores vivas e navegavam por entre milhares de espectadores. Na medida em que avançavam, centenas de pessoas se alinhavam à frente deles, ajoelhadas e à espera do momento em que a estátua passaria por suas cabeças. As maiores peregrinações de Taiwan — chamadas Baishatun e Dajia em referência aos templos de onde os peregrinos partem todos os anos — têm atraído um número recorde de participantes, muitos deles jovens, adolescentes ou na faixa dos 20 anos.

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Mazu, por vezes conhecida como Deusa do Mar, é a mais venerada entre dezenas de divindades populares às quais muitas pessoas em Taiwan recorrem em busca de consolo, orientação e boa sorte. As enormes procissões anuais em sua homenagem são barulhentas e extravagantes. E ainda assim, para muitos fiéis, são considerados eventos profundamente espirituais. Muitos taiwaneses afirmam estar orgulhosos de seu direito de escolher entre uma abundância de religiões, especialmente em contraste com os rígidos controles na China. A diversidade religiosa de Taiwan forma a identidade e os valores da ilha autônoma.

— Eu não esperava que houvesse tantos jovens fazendo a peregrinação assim. As pessoas costumavam pensar que a fé em Mazu era para pessoas idosas do campo — disse Chou Chia-liang, 28 anos, um designer de moda que havia viajado de Taipei, a capital, para a peregrinação de Dajia. — A maioria das pessoas em Taiwan é muito tolerante. Elas não têm a ideia de que ‘esta é minha fé e aquela é sua fé, e elas não podem se unir’.

Cerca de um quinto dos 23 milhões de habitantes de Taiwan se considera budista. Outros 5% são cristãos, e mais da metade participa do taoísmo e de uma variedade de religiões folclóricas relacionadas, incluindo a adoração a Mazu, também conhecida como Matsu. Na prática, muitas pessoas mesclam tradições budistas e folclóricas enquanto rezam por um nascimento saudável ou por uma nota alta em uma prova, por exemplo. Segundo Ting Jen-chie, que estuda religiões na Academia Sinica, um instituto de pesquisa de ponta, as doutrinas religiosas ressurgiram fortemente nos anos 80 e 90. Antes, disse ele, elas eram encontradas nas aldeias. Agora, estão presentes na “sociedade de classe média”.

Os maiores templos de Mazu e outras divindades são instituições poderosas que lucram com doações e serviços, incluindo memoriais para os mortos. Em épocas de eleição, os candidatos vão a esses locais, assim como em templos budistas e igrejas cristãs, conscientes da ingerência que as organizações podem ter sobre os eleitores — algo que Pequim também está atento. Por décadas, o governo chinês, que reivindica Taiwan como seu território perdido, tem invocado tradições religiosas compartilhadas, incluindo Mazu, para tentar atrair o povo taiwanês. Mazu também tem seguidores na costa leste da China, onde, segundo a história, ela nasceu por volta de 960 d.C. e salvou marinheiros da morte por afogamento.

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Apesar dos esforços de Pequim, muitos peregrinos falam de Mazu como uma deusa taiwanesa que por acaso nasceu do outro lado do estreito. Alguns, por outro lado, ignoram a política e dizem estar preocupados que as peregrinações estejam sendo poluídas por excesso de glamour.

Manifestações modernas

Por gerações, as peregrinações envolviam principalmente agricultores e pescadores que carregavam estátuas de Mazu por meio dos arrozais próximos e ao longo de trilhas de terra. Agora, elas refletem um país muito mais rico e urbanizado. As procissões de Mazu hoje passam por fábricas e rodovias, onde os cânticos e fogos de artifício competem com o barulho dos caminhões. As estátuas da deusa param em escolas, quartéis militares e, em um dos anos, até mesmo numa sala de exposição de uma concessionária de automóveis, cujos funcionários retiraram um veículo do local onde, segundo os fiéis, Mazu desejava descansar.

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Ao longo das rotas anuais, templos locais, residentes, lojas e empresas montam barracas para oferecer aos peregrinos comida e bebida gratuitas — melancia, tofu cozido, biscoitos, bebidas doces e água, por exemplo. Embora exista um tumulto, alguns afirmam que, quando entram no ritmo meditativo da caminhada, o barulho dos fogos de artifício e alto-falantes desaparece. Para Hung Yu-fang, um funcionário de uma empresa de seguros que fez a peregrinação de nove dias de Dajia pela quarta vez, durante a caminhada é possível ter “tempo e espaço para pensar profundamente nas coisas que não consideramos antes”.

— Durante algum tempo, a peregrinação era para os estratos mais baixos da sociedade. Apenas algumas centenas de pessoas participavam delas — disse Ting, o pesquisador de religião. — Agora ela é popular, mas muitos dos novos participantes mais jovens só caminham por alguns dias, e não a jornada inteira, para experimentá-la como cultura taiwanesa.

Nos últimos anos, o aumento de participantes foi impulsionado pela atenção da mídia (a televisão taiwanesa cobre as peregrinações como se fossem eventos esportivos importantes); por entusiastas online e pela facilidade da viagem, já que os trens são rápidos e eficientes. Em 2010, a peregrinação de Baishatun atraiu cerca de 5 mil pessoas; este ano, quase 180 mil se inscreveram, número que não inclui dezenas de milhares que se juntaram informalmente ao longo do caminho. Quando a peregrinação chegou ao templo Beigang Chaotian, no sul de Taiwan — seu principal destino antes de retornar para casa — quase 500 mil pessoas apareceram, um recorde, segundo os organizadores.