Geral
Artigo: Onde está nosso Jack Valenti?
Poderoso presidente da Motion Pictures Association defendia os interesses do audiovisual dos EUA; no Brasil, dois projetos de lei para regular a comercialização do streaming estão parados no Congresso
O todo-poderoso Jack Valenti, mesmo usando salto carrapeta, acho que não ultrapassava 1,60 m de altura. Era baixinho, mas mandava muito. Na Casa Branca, em Washington, despachava numa sala ao lado do presidente dos Estados Unidos. Jack Valenti representava os maiores produtores/distribuidores de audiovisual dos EUA, presidindo durante 38 anos a poderosa MPA (Motion Pictures Association), instalada na sede do governo americano. Antes disso, Valenti havia sido assistente especial do presidente Lyndon Johnson. Tinha credenciais. Como representante máximo da MPA, tinha acesso irrestrito à maior autoridade do país. Uma demonstração da relevância do audiovisual para os EUA. O lobby da MPA no Congresso atuava com igual poder de fogo.
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A produção audiovisual americana sempre tem sido assim, apoiada, incentivada e promovida com o suporte legal do Estado. E, como todos sabem, deu mais do que certo; o audiovisual produzido nos EUA domina o planeta. Domina a produção, a distribuição e a exibição. E, com variados incentivos, o Estado americano demonstrava, como demonstra até hoje, que sempre reconheceu a importância econômica e política da atividade audiovisual.
Assim, o audiovisual produzido nos EUA foi e é até hoje a ponta de lança para exportar o modelo de vida americano. Ironicamente, a atividade audiovisual nos EUA é invariavelmente citada como aquela indústria independente do Estado: ultraliberal. Ledo engano. A economia americana sempre foi assim, sinergia total em benefício do país.
Pelo cinema americano
Em 1978, ainda jovem cineasta, fui convocado para um encontro com Jack Valenti, no Rio. À época realizador de curtas-metragens, fiquei lisonjeado com o convite para uma reunião onde encontraria, no antigo Hotel Méridien, em Copacabana, todos os cardeais do cinema brasileiro.
Depois de meia hora de tensa espera, surgiu o pequeno e poderoso Jack Valenti. Cumprimentou-nos um a um e engrenou uma conversa objetiva. Revelou de cara que estava no Brasil com a missão de negociar com o governo a suspensão do que viria a ficar conhecido como a “lei do curta-metragem” — lei que obrigava os cinemas a exibir um curta-metragem brasileiro junto aos longas-metragens estrangeiros (americanos), remunerando os brasileiros com 5% da renda da bilheteria. Seus clientes, entre eles, Warner Bros., Disney, Paramount, Universal e Sony, não admitiam a legislação brasileira protegendo os filmes brasileiros de curta-metragem. E advertia que nós não alimentássemos qualquer esperança sobre a permanência dessa legislação: Jack só voltaria para os EUA depois da missão cumprida. No dia seguinte, pontuava, teria uma audiência no Planalto com o general Geisel, à época presidente do Brasil.
Valenti falava com desenvoltura sobre o encontro marcado, certo que seria atendido. Não demonstrava animosidade, mas uma segurança inabalável no sucesso da viagem. Tinha como trunfo a ameaça de uma sobretaxa que o governo americano poderia aplicar sobre as exportações de calçados brasileiros, caso não fosse atendido.
Diante de reações dos cineastas, Valenti, sem usar o big stick, mas de forma assertiva, se esquivava de qualquer ponderação: viera ao Brasil para defender seus clientes e faria isso da melhor maneira. O homem da MPA no Brasil era então Harry Stone. Foi ele o encarregado de estender o tapete vermelho para o chefe. Mas, apesar dos seus esforços, não conseguiu confirmar a agenda de Valenti com Geisel. “O alemão” passou a bola para Ney Braga, ministro da Educação, que, por sua vez, encaminhou a questão para Roberto Faria, presidente da Embrafilme. Foi Roberto quem recebeu Valenti.
Hoje o quadro se modificou, novas janelas para a comercialização do audiovisual foram criadas ao longo dos anos. Depois do cinema veio a televisão de sinal aberto e a TV por assinatura, o home video em seus vários formatos e, há cerca de 20 anos, as plataformas de streaming, que hoje adquiriram relevância definitiva no faturamento das produções audiovisuais. Até mesmo o prestígio do cinema como primeira janela foi dando lugar às produções das plataformas.
Sendo assim, nada mais natural que, hoje, a MPA represente também algumas plataformas, entre elas a Netflix, pioneira aqui no Brasil. Hoje são 60 plataformas de streaming operando no país. Ao contrário do resto do planeta, onde elas pagam contribuição para o desenvolvimento da atividade audiovisual, aqui no nosso Brasil operam sem qualquer regulação. Do pequeno produtor independente brasileiro às mais poderosas distribuidoras, todos pagam a Condecine — contribuição para o audiovisual. Em contrapartida, as plataformas de streaming, que detêm o maior percentual do faturamento resultante da comercialização audiovisual, não pagam nada. Não há explicação razoável para essa exceção (ou aberração), exceto a falta de uma lei para esse mercado. Acrescente-se a essa falta de regulação que o Brasil ocupa hoje o segundo lugar em número de assinantes desse acesso, o que desperta o apetite de todas as plataformas. Ou seja: aqui é um verdadeiro paraíso para aportarem todos os streamings.
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Para remediar essa deformação que domina a comercialização de produtos audiovisuais em streaming, já foram feitas algumas tentativas. Duas delas transitam no Congresso. Uma, o PL 2.331, estacionado no Senado; a segunda, o PL 8.889, dormindo na Câmara dos Deputados. A primeira é um desastre: propõe no máximo 3% da Condecine sobre o faturamento; a outra segunda tentativa é melhor: chega a 6% do faturamento contemplando a Condecine. Melhor, mas irrisória se comparada ao que pagam em qualquer país civilizado: no mínimo, 20% do valor cobrado pelo acesso a títulos em streaming. Isso tudo, sem se falar da reserva de mercado, exigida em toda a Europa. E, mais grave ainda, no caso da PL 2.331 do Senado, seria facultada à plataforma de streaming a utilização da contribuição legal em suas próprias produções.
Claro que atrás de toda essa política está aquela mesma MPA de que falamos acima. Só que os tempos são outros: não mais ameaçam retaliar a exportação de calçados brasileiros, mas atuam com um lobby poderoso sobre os congressistas, tentando a todo custo barrar a regulação do mercado no Brasil, ou, pelo menos, tornar inócua qualquer iniciativa promovida pelo Congresso. Já que não podem se confrontar com os países europeus que regulam a atividade, querem ter aqui a liberdade de que não desfrutam lá.
Jack Valenti, morto em abril de 2007, também não mais está à frente da MPA, mas nem por isso ela ficou menos poderosa. Hoje, tem como clientes as mesmas Disney, Paramount, Sony, Universal e Warner Bros... A única diferença é que agora a Netflix juntou-se ao grupo, representando um dos maiores faturamentos das seis gigantes.
Para enfrentar esse lobby desconcertante, as entidades representantes da atividade não têm cacife (nem recursos). Somente aliadas a uma atuação efetiva do governo poderão alterar esse quadro lamentável. E, quem sabe, fazer política para termos nosso Jack Valenti instalado numa sala do Planalto. Talvez na mesma sala onde atuava e de onde foi despejado o “gabinete do ódio”. Ali, ao lado do presidente, talvez consigamos regular as plataformas.
Em tempo: claro que em 1980 a MPA venceu a queda de braço com os produtores de curta-metragem. A lei do curta-metragem foi arquivada e a retaliação prometida contra os exportadores de calçados não se efetivou.
Diante desse quadro que tão poucos resultados promete para o audiovisual brasileiro, fica a pergunta: onde está e quem será nosso “Jack Valenti”, o brasileiro disposto a aglutinar nossos interesses?
José Joffily é diretor de filmes
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