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Netas de Cartola e de Clementina de Jesus e filha de Candeia se unem para apresentar sambistas às novas gerações

Projeto Matriarcas do Samba usa música e conversa para preservar memória de baluartes

Agência O Globo - GLOBO 27/08/2024
Netas de Cartola e de Clementina de Jesus e filha de Candeia se unem para apresentar sambistas às novas gerações

Cartola, Clementina de Jesus e Candeia jamais estiveram juntos no mesmo palco. Acaso ou não, estes três gigantes da música brasileira, embora pautados pelo mesmo gênero musical, têm belos históricos que se entrecruzam ao longo de décadas de atuação, mas nunca pisaram, lado a lado, diante do público para uma apresentação. Agora, seu legado atemporal vem despertando a atenção do público por meio do projeto Matriarcas do Samba, criado por três de suas herdeiras: Nilcemar Nogueira, Vera de Jesus e Selma Candeia, respectivamente netas de Cartola e de Clementina, e filha de Candeia. O que fazem? Encontros em que contam e cantam à moda antiga, como fizeram as pastoras de outrora, a obra do trio genial.

— Decidimos nos reunir e resgatar para as novas gerações toda a poesia e o lirismo de Cartola, Clementina e Candeia. Não somos cantoras profissionais, mas encantadeiras do samba. É uma forma que encontramos de mantermos viva a memória dos três, seja em uma escola pública, seja em roda de samba, ou palco de casas de shows — explica Selma Candeia.

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A ideia embrionária desta encanteria musical, alternada com contação de histórias, partiu de Nilcemar Nogueira, fundadora e diretora do Museu do Samba, aos pés do Morro da Mangueira, na Zona Norte carioca. Pesquisadora da cultura popular e, em especial, do gênero matricial da MPB, ela tem dedicado a vida à memorabilia do autor de “As rosas não falam” e de todos os expoentes do samba.

No museu que dirige, Nilcemar tem reunidos mais de 200 registros audiovisuais de personagens ilustres, entre sambistas e profissionais do carnaval, gravados nos últimos 20 anos. Há preciosidades, como depoimentos inéditos de Monarco, Nelson Sargento, Xangô da Mangueira, Zé Katimba e Tiãozinho da Mocidade.

‘Sinalizar nosso valor’

Nilcemar foi a responsável por incluir o samba de terreiro, o partido-alto e o samba de enredo no Livro de Registro das Formas de Expressão do Iphan. Também criou o Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira, assim que o Comitê do Patrimônio Mundial reconheceu o Cais do Valongo como Patrimônio Cultural da Humanidade. Nilcemar era secretária municipal de Cultura do Rio em 2017, quando o título foi concedido.

—Tive nos meus avós, Zica e Cartola, os maiores e melhores exemplos — diz Nilcemar. — Expressar-se através do samba, viver dele, é lindo, mas também dolorido, porque continuamos à margem. Então, precisamos com recorrência sinalizar o nosso valor. Foi isso que me motivou a dar origem às Matriarcas, ao lado da Selma e da Vera.

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Clementina e Cartola se encontraram nas gravações do disco “Fala Mangueira”, de 1968, e em muitas outras ocasiões, tendo ela inclusive participado de alguns famosos e emblemáticos saraus do Zicartola, restaurante que o compositor e a mulher, Zica, abriram em 1963 e mantiveram por 20 meses na Rua da Carioca, no Centro do Rio.

Vera de Jesus, neta de Clementina, recorda histórias contadas pela rainha Quelé sobre a amizade com o compositor mangueirense e a efervescência cultural e política daquele período.

— A relação dos dois era de admiração e respeito mútuos. Não tinha como ser diferente. Minha avó era Mangueira. E dos 63 anos, quando iniciou a carreira, até a morte, aos 86, viveu glórias e dissabores. Ela partiu em 1987, sete anos após Cartola. Mas nos deixou um baú de causos com ele — ressalta Vera de Jesus, que, como Nilcemar e Selma, compartilha com a plateia parte deste relicário narrativo.

Encontros especiais

Portelense nato, Antonio Candeia Filho, o Candeia, conviveu pouco com Cartola. Muito em função da falta de mobilidade, já que de 1965 até sua morte, em 1978, manteve-se sobre uma cadeira de rodas após levar cinco tiros numa discussão no trânsito — Candeia era um policial civil esquentado. Mas a amizade entre os dois resultou em uma das mais belas obras da música brasileira: “Preciso me encontrar”, de autoria de Candeia, gravada por Cartola em 1976 e reapresentada ao público por Marisa Monte em 1989.

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Selma Candeia destaca que, embora não fossem frequentes, os encontros entre o pai e Cartola eram muito especiais. Segundo Selma, foi Candeia quem convenceu Cartola a sair do Morro da Mangueira e comprar uma casa em Jacarepaguá, onde o portelense morava.

— Cartola estava irritado com o fato de a casa na Mangueira ter virado uma espécie de ponto turístico. E o meu pai o incentivou na busca por um local mais tranquilo e discreto. Ele se mudou no ano em que Candeia morreu — conta Selma, que lembra das muitas visitas que Cartola fizera ao pai quando este morava na mesma região. — Depois que Cartola se foi, Zica não aguentou e voltou para a Mangueira.

Bambas engajados

Um dos mais representativos espaços culturais do Rio durante a ditadura, o Teatro de Arena, em Copacabana, contou com participação ativa de Cartola, Clementina e Candeia no projeto que pode ser considerado pioneiro na integração entre morro e asfalto: Noitadas de Samba.

Criado m 1971 por Jorge Coutinho, ator e produtor cultural, em parceria com o também ator Leonides Bayer, o espetáculo passou a ocupar a programação das segundas-feiras do Arena. No ano anterior, Coutinho, integrante do Centro de Cultura Popular (CPC) da União Nacional dos Estudantes, a UNE, já havia organizado o Cartola Convida, série de apresentações do mangueirense ao lado de outras lendas.

Coutinho lembra que o incêndio da UNE, em 1964, provocado pelos militares, tinha sido testemunhado por ele e Cartola. Sete anos depois, o Noitadas de Samba seria como uma resposta ao ato infame.

— Cartola, Clementina e Candeia são ícones imbatíveis de enfrentamento e resiliência — diz Coutinho, hoje com 89 anos.

Selma, Nilcemar e Vera não reúnem forças à toa. As três seguem firmes os passos de seus ascendentes para manter como protagonista o samba, que “abraça o inimigo como se fosse irmão”, como canetou o próprio Cartola.