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Cientista espanhol 'ressuscita' moléculas de Neandertal para encontrar novos antibióticos

Inspirado pelo filme 'Jurassic Park', o grupo de César de la Fuente, da Universidade da Pensilvânia, recria material biológico humano extinto usando inteligência artificial

Agência O Globo - GLOBO 26/08/2023
Cientista espanhol 'ressuscita' moléculas de Neandertal para encontrar novos antibióticos
Foto: Neil Howard/Flickr

“Dentro de 10 a 20 anos morreremos de infecções bacterianas resistentes a antibióticos”, diz a geneticista Edith Heard. A Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta há anos sobre a praga de microrganismos que escapam aos medicamentos existentes e que matarão dez milhões de pessoas em todo o mundo anualmente, mais do que aquelas que morrem de câncer. Nesta batalha de dimensões gigantescas está César de la Fuente, ganhador do prêmio “Princesa de Girona” pela investigação científica e professor de bioengenharia na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos.

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Suas armas são a inteligência artificial e a experiência de sua equipe de pesquisa, a Machine Biology, capaz de detectar milhares de moléculas com potencial antibacteriano. A equipe as procura em compostos naturais, como o veneno de vespa, ou no mapa geral de proteínas do corpo. E, agora, nos nossos antepassados ​​Neandertais e Denisovanos, que serviram para “ressuscitar” moléculas perdidas pelo homo sapiens na sua evolução.

Existem mais células bacterianas no corpo do que células humanas. Entre as capacidades mais relevantes das bactérias, os organismos mais abundantes no planeta e responsáveis ​​desde a geração da placa dentária até a manutenção da fertilidade da terra, está a sua capacidade de desenvolver resistência aos antibióticos. E desta forma, tornar-se uma ameaça para milhões de pessoas.

A equipe de De la Fuente procura compostos para responder a este desafio. Fizeram isso no proteoma, conjunto completo de proteínas do corpo, onde descobriu 2.603 peptídeos (moléculas constituídas por aminoácidos) com funções biológicas não relacionadas ao sistema imunológico e que, no entanto, possuem propriedades anti-infecciosas.

De la Fuente, de 37 anos, incluído na lista dos 50 espanhóis mais premiados e distinguido entre os melhores investigadores pela American Chemical Society e pelo Massachusetts Institute of Technology, explica como funciona a "des-extinção", a recuperação de compostos do passado que não existem mais.

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“Desenvolvemos um algoritmo para explorar o proteoma humano como fonte de antibióticos e encontramos muitas dessas sequências que chamamos de peptídeos criptografados. Isso nos levou a pensar que essas sequências foram produzidas ao longo da evolução e desempenharam um papel no sistema imunológico para nos defender contra agentes invasores ou infecciosos como as bactérias. Então decidimos investigar o proteoma dos nossos ancestrais mais próximos, que são os Neandertais e os Denisovanos”, explica o cientista.

O proteoma de base se tornou público graças à investigação sobre DNA ancestral que culminou no ano passado com a atribuição do Prêmio Nobel a Svante Pääbo por revelar a genética de humanos extintos. “O que fizemos foi desenvolver um algoritmo para explorar estes dados, esses proteomas humanos para ver se conseguíamos encontrar antibióticos codificados nas proteínas”, detalha o investigador espanhol.

Inspiração em Jurassic Park

De la Fuente explica que é uma ideia inspirada em Jurassic Park. “O conceito do filme era trazer organismos inteiros de volta à vida: os dinossauros. Mas isso tem muitos problemas éticos, ecológicos e técnicos. Hoje não temos informações genômicas suficientes para ressuscitar um dinossauro. Criamos o conceito de extinção molecular: em vez de um organismo inteiro, tentar trazer de volta à vida moléculas do passado para lidar com problemas do presente, como a resistência aos antibióticos.”

A pesquisa, publicada na Cell Host & Microbe e revisada pela Nature, utiliza informações genômicas e proteômicas do DNA mitocondrial para encontrar, com a ajuda do algoritmo desenhado pela equipe e com a aplicação de inteligência artificial, moléculas que poderiam ser potenciais antibióticos.

“O momento mais fascinante foi quando ressuscitamos essas moléculas usando um método chamado síntese química em fase sólida. A partir do código que o computador nos dá sobre aminoácidos com capacidade antibiótica, fazemos com que as máquinas os sintetizem quimicamente”, acrescenta De la Fuente.

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A verificação experimental ocorreu quando eles expuseram suas moléculas ressuscitadas (quatro peptídeos do Homo sapiens, um do Homo neanderthalensis e um do Denisovan) em placas de Petri (vasos de laboratório) e em camundongos afetados pela bactéria Acinetobacter baumannii, uma causa comum de infecções hospitalares. Todos os seis mostraram efeitos positivos em graus variados, alguns com eficácia semelhante à dos atuais antibióticos convencionais.

“As doses utilizadas foram extremamente altas, mas a ideia é interessante”, esclarece Nathanael Gray, biólogo químico da Universidade de Stanford, na Califórnia, e não relacionado à pesquisa, à Nature. Gray duvida de um efeito imediato no desenvolvimento de medicamentos a partir de compostos extintos.

No entanto, De la Fuente acredita que o objetivo da pesquisa não é apenas encontrar novos antibióticos, mas “a nova forma de pensar sobre como descobrir novas moléculas usando informações de organismos extintos”.

“A des-extinção molecular pode nos ajudar a abrir novos espaços que não havíamos explorado anteriormente e isso significa que, talvez, possamos encontrar uma biologia dos nossos antepassados ​​com a qual possamos aprender mais sobre nós mesmos e sobre o potencial de algumas moléculas”, disse ele.

Euan Ashley, especialista em genômica e saúde de precisão da Universidade de Stanford, na Califórnia, concorda: “Mergulhar no genoma humano arcaico é uma abordagem interessante e potencialmente útil”.

A equipe do investigador espanhol passou meia década focada onde acredita poder encontrar uma nova arma fundamental para a saúde humana: no passado e no presente, nos humanos ou noutras áreas da natureza. Um exemplo é a descoberta de material biológico potencialmente benéfico no veneno da vespa solitária Eumenes micado, pesquisa publicada na Cell Reports Physical Science.

“Os venenos são uma fonte muito pouco explorada de potenciais medicamentos ou moléculas com funcionalidades interessantes. Há alguns anos que estudamos diferentes venenos para reprogramá-los e remover ou eliminar a toxicidade para aproveitar sua capacidade antibiótica”, explica De la Fuente.

A chave é a combinação de ferramentas de inteligência artificial com robótica biotecnológica e a experiência e conhecimento do Machine Biology Group. “Há cinco anos, o tempo médio para descobrir um antibiótico era de três ou seis anos. Agora, em horas ou dias, podemos descobrir milhares”, acrescenta o cientista.