Esportes
Chegada de astros do futebol à Arábia Saudita expõe vida em 'bolha' de estrangeiros e outro lado da sociedade local
Não pode fazer sinal da cruz? Vida a dois sem casamento é proibida? Álcool só nos países vizinhos? Nem tanto. Destino escolhido por Cristiano Ronaldo e Neymar cerca visitantes endinheirados de privilégios
Há dez dias, Cristiano Ronaldo, sua companheira Georgina Rodríguez e os filhos foram ao cinema. O escolhido se autoproclama “o mais luxuoso do mundo”. As sessões são privadas — é preciso reservar — e as salas, temáticas. Na programação, há desde blockbusters dos EUA, como “Barbie” e “Oppenheimer”, a filmes árabes e animações japonesas. O cardápio varia de fast foods à culinária de diferentes países. Um típico programa de família (com dinheiro) num dia de folga, que poderia se passar nos mais distintos pontos do planeta. No caso deles, um centro comercial de Riad, a capital saudita.
A chegada de uma constelação de estrelas do futebol jogou os holofotes para a Arábia. Não apenas para a agora badalada Saudi Pro League, mas também para a vida extracampo destes jogadores. Afinal, trata-se de uma sociedade sempre retratada como extremamente fechada, com regras rígidas de comportamento, restrições às mulheres, proibição da homossexualidade e não aceitação de manifestações religiosas públicas — que não o islamismo. Um contexto que não combina com o perfil médio dos futebolistas.
Mas não é o que o dia a dia dos atletas no país tem mostrado. A invasão de astros escancarou que, para estrangeiros de alto poder aquisitivo, a Arábia sabe ser flexível.
Não faltam restaurantes sofisticados, centros comerciais, parques, lojas de grifes internacionais, zoológico, além de programas no mar e no deserto. Um entretenimento de luxo que não causa estranheza a quem está habituado com a vida no ocidente.
— Para os estrangeiros, a realidade é outra. São acordos comerciais, business envolvido. Por isso, vivem como em bolhas — afirma a antropóloga Francirosy Campos Barbosa, pós-graduada na Universidade de Oxford, na Inglaterra, em Teologia Islâmica.
Nada representa melhor este conceito de bolha do que os condomínios onde os atletas residem, exclusivos para estrangeiros. Para além de moradia, os compounds, como são chamados, oferecem uma gama de serviços que anula o ingrediente local e faz com que se sintam em qualquer lugar do mundo: mercado, creche, academia, quadras, piscinas...
— A gente se reunia, fazia churrasco. Como não tínhamos muito contato com os sauditas, procurávamos sempre unir os jogadores de todos os países. A vida dentro do compound era a mesma coisa que estar fora da Arábia. Dava para se viver tranquilo — lembra o ex-atacante Elton Arábia, revelado pelo Corinthians e que somou três passagens pelo país entre 2007 e 2020.
Locais não entram nos compounds. Os funcionários são imigrantes que compõem a mão de obra barata do país. E, justamente por se tratar de uma bolha estrangeira, há tolerância ao consumo de álcool, mesmo proibido no país.
— Dentro dos condomínios realmente você encontra bebida. Mas eu, particularmente, preferia pegar a família e ir para o Bahrein ou para Dubai (vizinhos da Arábia Saudita que, além de permitirem o álcool, contam com uma oferta maior de lojas de grife e estabelecimentos de luxo) — continua Elton.
Quando negociava com o Al-Nassr, de CR7, para deixar o Botafogo e assumir o clube saudita, o técnico português Luís Castro chegou a ser questionado pelos mais próximos se não tinha receio de mudar-se para um país repleto de restrições à vida cotidiana. Para isso, tinha uma resposta pronta:
— E você acha que o Cristiano Ronaldo toparia ir para um lugar que fosse assim?
Não deixa de estar certo. No começo do mês, o atacante celebrou um gol com o sinal da cruz, símbolo do cristianismo. Nada lhe aconteceu. Desde 2016, a polícia religiosa não tem mais poderes para interpelar, perseguir e prender pessoas. Ela era conhecida por combater comportamentos tidos como ofensivos de acordo com a moral do wahabismo, corrente do islamismo ultrafundamentalista que rege a sociedade.
— Importante destacar que no Islã não há compulsão, no sentido de fazer o outro acreditar no que os muçulmanos professam. É pilar da fé do muçulmano considerar as religiões que vieram antes através dos seus livros. Torá, salmos, etc — explica Francirosy, apontando ainda um equívoco na visão de que foi dada uma concessão rara para que o português e Georgina morassem juntos sem serem casados (igualmente dada a Neymar e Bruna Biancardi).
— Se não são muçulmanos, não há como ter interferência. O muçulmano não interfere nas casas das pessoas. Não fiscaliza a moral. Então é algo do privado. E isso é proibido para eles, se intrometer na vida privada das pessoas.
Das companheiras dos atletas, o que se espera é que usem roupas sem decotes e que não deixam os ombros à mostra em público. Mas não precisam vestir as abayas (o longo vestido preto) e nem usar véus, como as locais.
Aquelas que buscam vem adquirindo status de socialites, com seguidores nas redes sociais e prestígio. Georgina que o diga. Além de ter feito campanhas publicitárias voltadas ao público da região, foi a presença mais repercutida na edição 2023 do Joy Awards, premiação de cinema, TV, música, esportes e influenciadores digitais do mundo árabe.
Um glamour que passa longe da rotina dos jogadores. Como os treinos são noturnos (em torno das 19h30), têm todo um dia livre antes de irem para os clubes. Que, na maioria das vezes, é passado dentro dos condomínios.
Esta tranquilidade só é quebrada no contato com a torcida. Ao contrário dos países vizinhos, a Arábia possui forte cultura futebolística. Jogos envolvendo ao menos um dos grandes (Al-Nassr, Al-Hilal, Al-Ahli e Al-Ittihad) contam com arquibancadas cheias. Nos bons momentos, os atletas são perseguidos nas ruas por fãs ávidos por uma foto ou para lhes dar algum presente. Mas também são pressionados quando o time não corresponde à expectativa.
— Existe uma cobrança saudável da torcida. O torcedor se pronuncia bastante em rede social. É um abiente muito competitivo — revela o brasileiro Péricles Chamusca, técnico do Al-Taawoun.
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