Economia

Há 50 anos, enchente nos EUA pôs o Brasil no mapa da soja

Além das inovações da Embrapa, crise impulsionou exportação brasileira

Agência O Globo - GLOBO 26/09/2023
Há 50 anos, enchente nos EUA pôs o Brasil no mapa da soja

As pesquisas da Embrapa, que desenvolveu tecnologias de cultivo de soja na região central do Brasil, são o elemento mais conhecido da expansão da agricultura no Cerrado, que acabaria transformando o país no maior produtor mundial do grão. Mas a história de sucesso da soja brasileira teve outros propulsores —e um deles, hoje pouco lembrado, acaba de completar 50 anos: a cheia do Rio Mississippi, nos Estados Unidos, uma das mais destruidoras da história do país.

No topo: Brasil é, agora, oficialmente o novo 'rei do milho' e supera os EUA em exportações globais

The Economist: revista diz que , com força do agro, Centro-Oeste já se parece com o Texas

'Terra e Paixão': Como na novela, famílias do agro relatam os desafios na sucessão do negócio

A bacia hidrográfica do Mississipi cobre quase um terço do território dos EUA e responde por mais de 90% da produção agrícola americana. Como o rio é também vital para o escoamento dos grãos do país, um dos maiores produtores agrícolas do mundo, as cotações internacionais de produtos como soja, milho, algodão e trigo podem disparar ou desabar, a depender do fluxo das águas.

Japão vira cliente

Na primavera, de 1973, o Mississippi transbordou como poucas vezes se viu. Suas águas atingiram o nível mais alto em 150 anos e inundaram quase 7 milhões de hectares, uma área que equivale, hoje, a todas as lavouras de soja do Paraná, o estado que é o segundo maior produtor do grão no Brasil. A enchente matou 33 pessoas e causou prejuízos de US$ 1,7 bilhão (R$ 8,45 bilhões), em valores atualizados.

O GLOBO no seu celular: Clique aqui para seguir o novo canal Economia e Negócios no WhatsApp

A cheia do Mississippi agravou a escalada inflacionária nos EUA — e o quadro ficaria ainda mais problemático a partir de outubro daquele ano, com a crise do petróleo, quando os principais países produtores impuseram embargo às exportações. O risco de escassez e aumento de preços de alimentos foi o estopim de uma insuspeita sanha protecionista no país que é porta-estandarte da livre concorrência: em junho, os EUA decidiram restringir suas exportações.

No caso da soja, a medida irritou principalmente o Japão, que não só era o maior importador mundial do grão naquele momento como comprava dos americanos mais de 90% do que consumia. “Nós estamos realmente furiosos com Nixon-san”, disse Hiroshi Higashimorl, secretário-geral da Associação Japonesa de Processadoras de Óleos, segundo registro do jornal The New York Times. Ele se referia ao presidente dos EUA, Richard Nixon.

Em Sapucaia: Um 'refúgio' no Rio de Janeiro abriga a primeira granja leiteira de cabras do Brasil

No início dos anos 1970, o Brasil já era o segundo maior produtor de soja do hemisfério ocidental, mas o cultivo ainda era pouco desenvolvido no país — a Embrapa nasceu em abril de 1973, coincidentemente durante a cheia do Mississippi —, e suas exportações, inexpressivas.

Isso até a enchente do Mississippi e a canetada protecionista de “Nixon-san”. Menos de dois meses depois de os americanos limitarem as exportações de soja e outros produtos agrícolas, uma comitiva japonesa desembarcava no Brasil para negociar a compra de 2,5 milhões de toneladas para entrega no ano seguinte — a carga valia cerca de US$ 1 bilhão, em valores da época.

Pelo caminho: Rastro de grãos deixados por caminhões nas estradas alimentam animais de pequenas propriedades

De acordo com as estatísticas do Departamento de Agricultura dos EUA, o Brasil respondeu por mais de 11% das exportações globais de soja em 1973. Dois anos antes, a fatia brasileira havia sido de menos de 2%.

A inundação histórica não foi uma catapulta isolada da soja brasileira. Até então, o farelo de peixe era a principal matéria-prima para a produção das rações usadas na pecuária. A oferta global do insumo sofreu um baque em 1972, quando a pesca de anchovas no Peru foi excepcionalmente baixa. Na falta de pescado, o farelo de soja ganhou espaço — e o Brasil, uma nova oportunidade de mercado.

‘Rei da soja’

A expansão da cultura levou a Cargill, uma das maiores empresas americanas com operações no agronegócio brasileiro, a decidir instalar no Brasil, também em 1973, uma de suas primeiras fábricas de processamento de soja fora dos EUA. A unidade de Ponta Grossa (PR), que segue em atividade, recebeu neste ano investimento de R$ 35 milhões em melhorias.

'Terra e Paixão': Como na novela, famílias do agro relatam os desafios na sucessão do negócio

Grandes projetos nacionais também começaram a surgir naquele ano. O empresário Olacyr de Moraes, que tinha negócios na área de transportes, farejou a oportunidade na corrida internacional por novos fornecedores de soja e fundou, em Ponta Porã (na época um município de Mato Grosso e hoje parte do Mato Grosso do Sul), a Itamaraty Agropecuária.

À frente da empresa, ele reinou como o “rei da soja” nas duas décadas seguintes. Ele morreu, aos 84 anos, em 2015.