Economia

Governo vai ao STF para quitar R$ 95 bi com precatórios e classificar parte do gasto como despesa financeira

Fazenda quer abertura de crédito extraordinário para quitar todo montante da dívida, mas sem que gasto extra dispare punições previstas no arcabouço fiscal

Agência O Globo - GLOBO 25/09/2023
Governo vai ao STF para quitar R$ 95 bi com precatórios e classificar parte do gasto como despesa financeira
STF - Foto: Marcello Casal JrAgência Brasil

O Ministério da Fazenda, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF), nesta segunda-feira, para que a Corte autorize uma mudança de classificação no gasto do Tesouro com precatórios. O governo quer quitar todo o passivo dessa dívida, cerca de R$ 95 bilhões, por meio da abertura de um crédito extraordinário.

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Com isso, esse gasto deixaria de acionar as punições previstas no arcabouço fiscal, em caso de descumprimento das metas.

Segundo o secretário do Tesouro, Rogério Ceron, o objetivo é evitar o crescimento de uma despesa paralela, não contabilizada, que poderia superar R$ 200 bilhões em 2027.

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— O pedido é para abrir um crédito extraordinário para quitar todo esse passivo, que não está sendo contabilizado devidamente e se transformou em um estoque de dívida paralela — disse Ceron.

A medida, no entanto, já recebeu críticas de especialistas em contas públicas. Na visão do economista Gabriel de Barros, da Ryo Asset, o governo abre mais espaço para despesas. Juliana Inhas, coordenadora do curso de Economia do Insper, avalia que a proposta enfraquece a credibilidade do arcabouço fiscal (Leia mais abaixo).

O estoque de precatórios não pagos gira em torno de R$ 95 bilhões, segundo Ceron. Desse total, cerca de R$ 60 bilhões são da dívida principal e R$ 35 bilhões de juros. A despesa seria dividida em dois grupos: o valor principal continuaria sendo classificado como gasto primário, enquanto juros e correção monetária seriam classificados como despesa financeira, fora da meta fiscal de resultado primário.

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"A AGU pede para o STF autorizar o governo a abrir crédito extraordinário para quitar o passivo do regime de precatórios criado pelas normas, distinguindo o valor principal dos títulos (que devem continuar sendo considerados despesas primárias) dos encargos financeiros oriundos da incidência de juros e correção monetária (que, como despesas financeiras, não devem estar sujeitas ao limite de resultado primário previsto no novo regime fiscal, tal como os encargos sobre os títulos da dívida pública não o são)", diz a Ação da AGU enviada ao STF.

Segundo a Fazenda, o ideal seria que o STF julgasse o caso ainda este ano, para que o passivo seja eliminado em 2023, sem influenciar os números de 2024. Na hipótese de o julgamento ocorrer apenas no ano que vem, Ceron diz que o objetivo é que a despesa com precatório não dispare os gatilhos de descumprimento da meta.

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A meta do ano que vem é buscar o déficit primário zero, e isso está mantido, segundo a pasta. Na hipótese de se pagar R$ 60 bilhões com precatórios (que seriam os gastos com o principal da dívida), haveria descumprimento da meta, mas sem disparar os gatilhos e as punições previstas no arcabouço fiscal. Se todo o passivo for pago este ano, haveria espaço para ficar dentro da meta.

Ao pedir a abertura de crédito extraordinário, o governo teria que enviar uma Medida Provisória para aprovação no Congresso.

A AGU também pediu para deixar de regulamentar o uso de precatórios para o pagamento de outorgas de concessões de serviços e aquisição de imóveis públicos. O governo anterior, do presidente Jair Bolsonaro, criou um limite artificial para a quitação de precatórios. O governo justifica que isso “afronta princípios constitucionais e gera grave desequilíbrio para as contas públicas”.

"Com o pedido de declaração de inconstitucionalidade do regime transitório de precatórios criado pelas emendas constitucionais nº 113 e nº 114, a AGU suspende a elaboração de uma nova regulamentação para uso dos créditos nas hipóteses previstas no art. 100, § 11, da Constituição Federal – como aquisição de imóveis da União ou pagamento de outorgas pela exploração de serviços públicos", diz o pedido.

'Política expansionista'

Na visão do economista Gabriel de Barros, da Ryo Asset, especialista em contas públicas, a medida é polêmica. Segundo ele, o governo está propondo uma nova interpretação para esse tipo de despesa com precatórios.

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— O principal entra como despesa primária, e os juros, como financeira. Acontece que a lei que rege a contabilidade pública não autoriza essa diferenciação. É uma interpretação nova e diferente do que se faz nos últimos 30 anos em matéria de contabilidade federal — afirmou.

Barros avalia que haverá, sim, aumento de espaço para mais gastos nos próximos anos. Segundo ele, como o governo quitará o estoque da dívida por crédito extraordinário, parte desse gastos que aconteceria nos próximos anos deixará de existir.

— Como o estoque será todo pago de uma vez, a despesa hoje consignada nos orçamentos dos próximos anos com essa rubrica deixa de existir e será ocupada por novas. Ou seja, autoriza uma política fiscal ainda mais expansionista que a elevação do pé direito do teto já entregou, aprovado via PEC da Transição e que subiu em 2% do PIB o gasto — disse Barros.

A economista Juliana Inhas, coordenadora do curso de Economia do Insper, também criticou a medida.

- Pra mim eles estão operando em cima do arcabouço. Jogam juros pra fora do arcabouço pra ganhar espaço. Não acho uma prática boa. Isso abre mais um precedente pra que o arcabouço tenha efetividade baixa. E piora a transparência das medidas, e até mesmo a credibilidade da regra.

Para a diretora da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, Vilma da Conceição Pinto, a medida reduz a pressão das despesas com precatórios em 2027, mas piora o resultado fiscal no curto prazo:

- Eles querem querem abrir crédito extraordinário para pagar um passivo que ficaria para 2027. Na realidade, reduz a pressão para 2027, piora o déficit primário no curto prazo sem afetar as regras porque o crédito extraordinário fica fora do teto (do arcabouço fiscal) - disse a economista.

Entenda os precatórios

O pedido do governo Lula ao Supremo Tribunal Federal (STF) para quitar dívidas do precatório por meio de crédito extraordinário é resposta a uma medida editada ainda no governo Jair Bolsonaro que retirou parte do pagamento de precatórios do orçamento da União. O Ministério da Fazenda tenta uma saída para realizar a quitação, mas sem sofrer as penalidades por estourar a meta fiscal de 2024.

A chamada PEC dos Precatórios foi proposta pelo ex-ministro da Economia Paulo Guedes e promulgada pelo Congresso em dezembro de 2021. A proposta autorizou o ex-presidente Jair Bolsonaro a aumentar os gastos em 2022, quando disputou a reeleição, permitindo, por exemplo, a elevação do Auxílio Brasil, hoje Bolsa Família, para R$ 400, no mínimo.

O texto foi aprovado pelo Congresso Nacional, e credores de precatórios da União tiveram que entrar numa fila para receber suas dívidas, sem prazo. A PEC possibilitou uma margem de R$ 106 bilhões no Orçamento de 2022. O projeto foi considerado o mais importante do último ano do governo Bolsonaro e mudou o teto de gastos.

Na prática, a PEC criou um limite para despesas com precatórios, que ficaram congeladas ao valor desembolsado com a rubrica em 2016, quando foi aprovado o teto de gastos. Com o teto de gastos, a soma das despesas da União passou a ser calculada com base naquele ano, reajustado pela inflação (o IPCA). Como os precatórios subiram mais que a inflação, essa despesa foi consumindo espaço para outros gastos.

Na ocasião, Guedes classificou o gasto com precatórios como "meteoro", em uma crítica às decisões do Judiciário contra a União. A PEC foi costurada com ajuda do Tribunal de Contas (TCU) e do próprio STF.