Economia

‘Folga de capacidade deveria evitar propagação de apagão para todo Brasil’, diz especialista

Segundo Edvaldo Santana, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), interrupção do fornecimento de energia não tem a ver com falta de infraestrutura de geração ou transmissão; gestão poderia evitar que falha se espalhasse

Agência O Globo - EXTRA 15/08/2023
‘Folga de capacidade deveria evitar propagação de apagão para todo Brasil’, diz especialista

O apagão de energia que atingiu praticamente todo o país nesta terça-feira não tem relação com falta de capacidade de infraestrutura de geração ou transmissão de eletricidade, disse Edvaldo Santana, professor aposentado da Universidade Federal de Santa Catarina (Ufsc) e ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

E se houve falha pontual em uma subestação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, pode ter havido erro de gestão para lidar com o problema, pois “a folga de capacidade deveria evitar a propagação da falha para todo Brasil”. Qualquer que seja o cenário, não tem qualquer relação com a privatização da Eletrobras, disse o especialista, em entrevista ao EXTRA.

O apagão de energia na manhã desta terça-feira indica falta de infraestrutura nas linhas de transmissão? Há algum gargalo?

Do ponto de vista da energia elétrica, não temos gargalos. Temos, hoje, um excedente de capacidade de geração e de transmissão. Ou seja, mesmo sem saber a raiz da do apagão, ela não terá qualquer relação com gargalos.

Se não temos gargalos, aumentam as chances de que a causa do apagão de hoje tenha sido alguma falha de equipamento ou erro de gestão?

Sim. Não se sabe ainda exatamente em qual equipamento ou instalação, mas é quase certo que foi uma perturbação motivada por falha de alguma coisa fixa. Mas não se deve descartar a falha humana, embora seja menos provável. Se é uma falha de equipamento ou humana, a folga de capacidade deveria evitar a propagação da falha para todo Brasil.

Por que essa folga deveria evitar a propagação?

Porque se tem bastante geração em tudo quanto é lugar do país, e tem transmissão, não era uma falha em algum ponto que ia afetar todo o sistema. Havia flexibilidade para remanejar a geração.

A atual capacidade de geração e transmissão está adequada, qualitativamente, para o aumento das fontes intermitentes, como eólica e solar, na geração?

Hoje, a capacidade de geração e transmissão é bem adequada, em quantidade e qualidade. Porém, o atendimento do consumo, em razão do aumento da participação das renováveis variáveis, ficará muito vulnerável à qualidade e à confiabilidade, que depende da transmissão e da resposta das usinas flexíveis, como as hidrelétricas.

Como o sistema de transmissão deveria se preparar para esse aumento da participação das fontes eólica e solar na geração?

O sistema precisa de importantes mudanças no design da operação, e não sei quem está a cuidar disso. O recurso escasso, dado o aumento das renováveis, passa a ser a confiabilidade, e não mais a energia.

Boa parte da expansão da fonte solar na geração de energia se dá na geração distribuída, as placas solares nos telhados. Isso afeta de alguma forma a capacidade das linhas de transmissão?

A geração distribuída com fotovoltaica afeta todo sistema, mas muito mais a distribuição. A rigor, a geração distribuída transfere boa parte da operação do sistema para as distribuidoras, que não sei se já estão se preparando para isso. Já está ocorrendo inversão do fluxo de potência rede de distribuição o que prejudica a qualidade do suprimento.

O fato de que a geração distribuída tem uma participação relevante deveria afetar de alguma forma a preparação da capacidade das linhas de transmissão?

A geração distribuída até deveria reduzir a necessidade de transmissão. Mas aumenta muito a necessidade de interações entre o operador da transmissão e cada distribuidora. Ou seja, as mudanças são muito mais de software que de hardware.

A interrupção teria ocorrido numa subestação da linha de transmissão de Belo Monte. É sinal de algum problema mais estrutural na ligação das novas hidrelétricas do Norte?

Ter sido numa subestação da linha de transmissão de Belo Monte é um complicador, pois a usina, nesta época do ano, produz bem menos que sua capacidade (por causa do regime de chuvas, que reduz a vazão do Rio Xingu). Um problema de escoamento de, por exemplo, 4 mil megawatts (MW) de Belo Monte não poderia resultar num corte de carga de 16 mil MW e chegar ao Rio Grande do Sul. Em outras palavras, a transmissão é suficiente e adequada, mas como estão as manutenções? Como foram as respostas às ordens do operador?

Isso reforça a possibilidade de falha de equipamento ou humana?

Reforça. Falhas sempre ocorrem. Agora, uma falha em Belo Monte não pode ter repercussão tão grande, a menos que tenha havido alguma falha humana ou de equipamento.

O governo e alguns parlamentares da base de apoio falaram em possível efeito da privatização da Eletrobras no apagão. Faz algum sentido?

Não se sabe qual a raiz do problema, mas garanto que não foi a privatização da Eletrobras. Primeiro, se foi numa linha de Belo Monte, ela é privada desde o início, (a concessão da linha de transmissão) foi leiloada no governo do PT. Via Chesf e Eletronorte (subsidiárias da Eletrobras), a empresa é sócia ou tem participações nessas concessionárias, mas o controle sempre foi privado. É mais um discurso político.

O governo também falou em colocar a Polícia Federal (PF) e a Abin nas investigações sobre as causas. As características do apagão poderiam apontar para sabotagem?

Não sei se dá para descartar, mas a probabilidade é muito pequena.