Os que ficam
Há dias que nascem com o peso da lembrança — e o de hoje é um deles. Sexta-feira, 31 de outubro, véspera de um fim de semana que não é comum: no domingo, 2 de novembro, o país inteiro se curva diante da ausência. Dia de Finados. Dia em que os vivos se lembram de que são mortais.
As floriculturas já se preparam desde cedo. Nas calçadas, vasos de crisântemos se alinham como pequenos exércitos coloridos, prontos para marchar até os cemitérios. Há quem compre por tradição, há quem compre por amor, e há quem compre apenas porque acha bonito ver flor no túmulo — como se o gesto bastasse para dialogar com o tempo.
Mas o verdadeiro ritual não acontece nos cemitérios. Acontece dentro da gente. É ali que repousam os mortos mais íntimos: os que não têm nome em lápide, mas têm lembrança em canto de casa, em fotografia antiga, em frase que a gente ainda repete sem querer.
Porque, afinal, o Dia de Finados não pertence aos que se foram. Pertence aos que ficaram.
Os que ficaram sabem como é o silêncio da casa depois do velório. Sabem o peso do telefone que não toca, da cadeira vazia à mesa, da receita que ninguém mais faz do mesmo jeito. Os que ficaram se tornam especialistas em saudade. Aprendem a lidar com o tempo como quem lida com uma ferida: não para curá-la, mas para aprender a conviver.
Há, em cada um deles, uma chama discreta que insiste em arder. Uma vela que não está no cemitério — está no peito. A gente acende essa vela sem perceber, todas as vezes que lembra o jeito de rir de alguém, ou o perfume que vinha antes da voz. E há dias em que essa chama quase apaga — não por esquecimento, mas por exaustão. A saudade também cansa.
Finados é o dia em que o Brasil inteiro se torna um grande santuário de ausências. As ruas ficam mais silenciosas, o ar mais lento, os rádios mais comedidos. É como se o país inteiro parasse para escutar o passado. E nessa pausa há algo de sagrado, mesmo para quem não tem fé.
Os que ficam, no entanto, não vivem apenas de lembrança. Vivem de continuidade. De pequenas heranças invisíveis: o jeito de dobrar uma roupa, a mania de guardar as cartas, o olhar que reconhece um gesto e sorri — porque o corpo partiu, mas o gesto ficou.
Há quem diga que lembrar é sofrer. Talvez. Mas esquecer é morrer duas vezes. Por isso, neste domingo, haverá multidões visitando os túmulos e outras multidões, silenciosas, visitando a própria alma. Uns levam flores, outros levam lágrimas — e há ainda os que não levam nada, apenas o coração aberto. E todos têm o mesmo destino: voltar pra casa sentindo que não se despede de quem se ama.
Porque ninguém se despede de verdade.
Os que vão, partem; os que ficam, permanecem. Mas, aos poucos, um e outro se encontram num território que não é nem de lá, nem de cá: o da memória. E nesse território, as vozes que amamos continuam nos chamando — não pelo nome, mas pela ternura.
No domingo, as velas vão acender o cemitério. Mas hoje, nesta véspera silenciosa de sexta-feira, quem tem coração já sente o clarão do amor que não se apaga. E é ele, só ele, que mantém de pé os que ficam.
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