
Nepotismo de estimação: a naturalização do poder herdado

No Brasil, o poder não se conquista: herda-se. Passa de pai pra filho, de tio pra sobrinho — e até de sobrinhos pra tias e tias —, de sogro pra genro, e às vezes de padrinho pra afilhado, com direito a bênção e retrato na parede da repartição. É o nepotismo de estimação, aquele que não se esconde mais, que já passeia de coleira solta pelos corredores públicos, abanando o rabo da impunidade.
Antigamente, ao menos, o nepotismo era tímido. Fazia-se de maneira discreta, com um verniz de moralidade e um medo respeitável de ser pego. Hoje, virou orgulho de família. Nomear parentes virou gesto de amor — e não de ilegalidade. É o “meu menino merece uma chance”, “é só pra ajudar um pouquinho”, “é de confiança, conhece a casa”. A confusão entre o público e o privado, tão antiga quanto o Brasil, ganhou uma roupagem de afeto.
Em muitas cidades do interior, o poder virou herança afetiva, como uma fazenda política cercada de sobrenomes. O mandato, o cargo e o contrato são repassados de geração em geração com o mesmo zelo com que se transmite uma tradição de família. E o eleitor, cansado de promessas, acaba se acostumando. Passa a achar normal. Afinal, “pelo menos é gente conhecida”. E assim o vício se perpetua: o voto vira favor, o favor vira costume, o costume vira cultura — e a cultura vira condenação coletiva.
O nepotismo é, no fundo, a mais silenciosa das corrupções. Ele não explode manchetes nem rende escândalos, mas corrói devagar o sentido da República. Quando o poder é sempre ocupado pelos mesmos sobrenomes, o mérito se torna irrelevante, e a esperança morre de inanição. O servidor qualificado vira figurante, o concurseiro vira piada e o cidadão comum, mero espectador da peça que se repete há décadas.
O mais curioso é como o nepotismo de estimação se disfarça de virtude. O parente vira “assessor técnico”, o primo é “consultor de confiança”, a esposa é “braço direito”, o cunhado é “coordenador de campo”. Todos são indispensáveis — até o escândalo seguinte. E quando alguém questiona, a resposta vem pronta: “Mas trabalha direitinho!”. Como se a competência anulasse a imoralidade, como se honestidade fosse coisa opcional quando o sangue é o mesmo.
É por isso que a política brasileira se renova pouco: porque o poder aqui é tratado como herança — e não como serviço. A cadeira do gabinete tem dono, e o sobrenome, senha de acesso. E quem ousa desafiar o clã acaba tratado como invasor, como quem ousou pisar num território que não lhe pertence.
Enquanto o nepotismo for visto como coisa “de família”, continuaremos sendo um país onde o mérito é exceção e o parentesco, regra. E o povo, pacato, continuará assistindo à cena de sempre: o poder passando de pai pra filho, de tio pra sobrinho, de sobrinhos pra tias e tias, de prefeito pra herdeiro, de cargo pra apadrinhado — como se fosse natural.
Talvez um dia o Brasil descubra que o poder público não é herança, é confiança. Que o Estado não tem sobrenome, tem dever. Que o cargo não é uma casa de família, é um serviço temporário. Até lá, seguiremos com o mesmo elenco e o mesmo roteiro — mudam as eleições, mas o sobrenome continua o mesmo nos crachás.
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