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Análise: relações do Brasil com a África não podem ficar à mercê da vontade política de cada governo

Sputinik Brasil 19/09/2025
Análise: relações do Brasil com a África não podem ficar à mercê da vontade política de cada governo
Foto: © Ricardo Stuckert / PR

Uma das nações mais populosas e ricas da África, a Nigéria é parceira estratégica para o Brasil na região. Essa relevância ficou evidente nos acordos bilaterais firmados durante visita oficial do presidente Bola Tinubu a seu homólogo brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, em Brasília, no mês passado.

Dentre os destaques estão memorandos de transferência de tecnologia e cooperação em ciência, tecnologia e inovação, sobretudo na área voltada para o agronegócio.

As possibilidades de trocas comerciais e vantagens recíprocas são inúmeras, mas a lógica desses acordos deve necessariamente se basear na solidariedade tão aclamada nos discursos que defendem o fortalecimento das relações Sul-Sul, de acordo com especialistas ouvidos no podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, desta sexta-feira (19).

A transferência de tecnologia e de cooperação Sul-Sul deve avaliar os impactos sociais nos países envolvidos, ponderou a doutora em antropologia social pela Universidade de Brasília (UnB) e graduada em ciências sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) Ana Carolina Costa.

Segundo ela, o Brasil não pode reproduzir uma lógica de imperialismo dentro das cooperações Sul-Sul, que chamou de "subimperialismo", quando um país periférico é ao mesmo tempo explorado pelo sistema capitalista global e explora outros países também periféricos.

"De fato, existe uma transferência de tecnologia, mas não é um partilhamento no processo de construção e desenvolvimento dessa tecnologia, reproduz a lógica de aplicar essa tecnologia brasileira no setor principalmente da agricultura, da aviação", avaliou ela. "Então, tem um certo descompasso entre o que tem sido chamado, de fato, de transferência de tecnologia e o que tem acontecido na prática [...] o Brasil, ele ganha muito mais do que os países africanos", opinou ela.

A pesquisadora deu como exemplo o projeto ProSavana, em Moçambique, que envolvia o Brasil e Japão, cujo objetivo era desenvolver a agricultura no norte do país:

"É um projeto que, aqui no Brasil, é considerado de ponta, pioneiro, de desenvolvimento agrícola. Mas as manifestações contrárias a esse projeto em Moçambique são imensas [...] Porque, quando a gente exporta tecnologias, muitas vezes, exporta também os problemas. O problema da questão da propriedade de terra, a gente exporta o problema da especulação imobiliária, os problemas ambientais", elencou Costa.

Para o professor de relações internacionais da Universidade Veiga de Almeida (UVA) Alexandre Alvarenga, a cooperação mais horizontal com países do continente africano pode ser o diferencial brasileiro na desigual disputa por projeção com potências internacionais:

"O Brasil não deve se projetar com esse pensamento de potência predadora, mas como um país que tem laços históricos, que pode desenvolver uma complementariedade econômica com o continente africano, ser uma alternativa para reduzir suas dependências econômicas, financeiras, estruturais, de forma geral, reduzir suas vulnerabilidades", argumentou ele. "Porém, o grande questionamento sobre esse tipo de cooperação é o quanto a gente consegue colocar isso em prática".

Nesse sentido, o exercício do Brasil dever ser o de resgatar o passado e também ressignificar essas relações para um futuro onde os dois continentes possam prosperar, defendeu Alvarenga.

O catedrático lembrou que esse tipo de aproximação entre o Brasil e países parceiros na África tem ocorrido gradualmente desde a década de 1960, com missões comerciais, aberturas de embaixadas, visitas presidenciais e maior articulação com países africanos dentro da ONU, perdão de dívidas, maior número de cooperações com instituições na área de saúde, defesa etc.

A primeira gestão de Lula, opinou ele, incrementou essa política ao ir além do viés econômico e comercial, e englobando o geopolítico e cultural.

Investir na África dever ser 'política de Estado'

Ambos os especialistas reconheceram o esforço do governo de Luiz Inácio Lula da Silva em reconstruir os laços dentro dessa perspectiva Sul-Sul, após uma série de embaixadas fechadas no continente africano pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, e mostrar protagonismo nesse cenário internacional.

Alvarenga mencionou iniciativas recentes como cooperações para elaborar eleições, criar instituições públicas, instituições políticas e sociais, mesmo formar e capacitar forças de defesa de alguns desses países. No entanto, lamentou que a política externa brasileira em relação ao continente africano fique à mercê do governo de turno, em vez de ser uma política de Estado.

Ele deu como exemplo a queda no comércio com a Nigéria nos últimos 20 anos devido à falta de "vontade política":

"A gente tinha ali um comércio na casa de R$ 10 bilhões no início da década de 2010, e agora temos com a Nigéria na casa dos R$ 2 bilhões. É uma retração muito grande. E aí, acho que, independente de biologia, orientação política, é preciso ter pragmatismo, entender a África também como um espaço de oportunidades para o desenvolvimento brasileiro", comentou.

Para tudo isso sair do papel, defendeu o professor, é vital que haja investimento de tempo, dinheiro e estudo:

"Vai ter que promover encontro de empresas e comitivas e explorar mercado. Então é um trabalho, realmente, não é algo que acontece de forma automática: 'Olha, assinamos aqui um acordo de livre comércio e agora os investimentos e os produtos vão fluir nos mercados'".

No caso da Nigéria, seu protagonismo regional econômico, político e de produção intelectual a torna porta de entrada para o Brasil rumo a outros mercados no continente. Liderança dentro da União Africana e das comunidade dos países da África Ocidental, vem liderando processos de integração, constituição da área de livre comércio, e programa de infraestrutura e desenvolvimento da África. Por outro lado, tem muito em comum com o Brasil:

"Ela tem muitos desafios sociais que esses projetos de cooperação podem colaborar, se a gente pensar hoje que um dos grandes desafios da Nigéria é a agricultura, a produção agrícola. Porque é um país extremamente rico em petróleo, que não refina. E essas zonas de extração de petróleo na Nigéria têm impactado extremamente as comunidades agrícolas", alertou Costa.