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'Não tenho nenhuma diferença contigo', disse atirador do Cefet a estagiária que estava na sala onde uma das vítimas foi baleada

Agência O Globo - 03/12/2025
'Não tenho nenhuma diferença contigo', disse atirador do Cefet a estagiária que estava na sala onde uma das vítimas foi baleada
'Não tenho nenhuma diferença contigo', disse atirador do Cefet a estagiária que estava na sala onde uma das vítimas foi baleada

No dia do crime em que foram mortas a diretora Allane de Souza Pedrotti Matos, de 41 anos, a psicóloga Layse Costa Pinheiro, de 40, o atirador João Antônio Miranda Tello Ramos Gonçalves, que depois se matou, chegou pela manhã ao Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet), no Maracanã, para trabalhar como fazia habitualmente. Ele não estava afastado. Um laudo médico particular apresentado pelo servidor e ratificado por uma junta convocada pela instituição de ensino atestava que o funcionário estava apto para trabalhar, desde maio.

Nesse dia ele passou pelas catracas tranquilamente levando nas costas uma mochila, onde possivelmente estava a arma do crime, uma pistola Glock calibre 380. A instituição de ensino, como as demais da rede federal, não fazem revista em quem entra nem possuem detector de matais. Ele trabalhou normalmente e à tarde foi até onde ficavam as vítimas, em salas separadas, porém próximas, localizadas no Bloco E do primeiro andar, onde ficam os setores de direção e departamento pedagógico.

A primeira sala em que ele entra é a da Allane, que está acompanhada de uma estagiária. "Não tenho nenhuma diferença contigo", teria dito para a menina que foi embora correndo. Então ele atirou na servidora, que foi atingida na cabeça e no ombro. Depois, ele se dirige à sala de Layse que estava sozinha e também atira. Ela foi ferida na cabeça e no tórax. O relato é do diretor-geral do Cefet, Mauricio Motta. As duas chegaram a ser levadas para o Hospital Municipal Souza Aguiar, no Centro do Rio, mas não resistiram.

— Não foi ao acaso. Ele tinha alvos bem determinados. Para ter uma ideia, no primeiro ataque ele foi à sala da Allane, junto a ela estava uma aluna, estagiária. Ele falou claramente que não tinha qualquer diferença com a menina. Ela saiu correndo e então ele atirou. Depois foi para a outra sala onde atirou na Layse. Até quinze minutos antes ela estava com outra servidora que tinha saído para outro setor e foi o que salvou a vida dela — relatou o diretor.

Desde maio, João Antônio tinha sido transferido para a Coordenação de Cursos Subsequentes. Esse foi o último recurso, já que não tinha como afastá-lo do trabalho. Lá, ele lidava apenas como alunos adultos. A direção entendia que esse era o perfil de estudantes mais adequado para receber a orientação pedagógica do funcionário. Outra preocupação da instituição foi colocá-lo sob a chefia de um homem. O caso é investigado pela Delegacia de Homicídios da Capital (DHC) como duplo feminicídio, porque testemunhas ouvidas pela especializada relataram que o assassino não aceitara ser comandado por mulheres.

— A gente fez questão de colocar um homem para chefiá-lo, porque entendi que poderia ter essa questão de misoginia — disse Maurício Motta,, acrescentando que todas as divergências envolvendo o funcionário ocorreram sempre com mulheres.

Antes dessa transferência foram oferecidas ao servidor ao menos outras duas opções, todas recusadas. Na verdade, ele reivindicava o retorno ao setor de origem e isso foi alvo de uma ação na Justiça.

Maurício Motta afirmou que pelas atitudes do funcionário, não parecia que ele fosse uma de pessoa em perfeito equilíbrio e solicitou que o mesmo passasse por uma perícia médica de cunho psiquiátrico para confirmar que podia voltar ao trabalho, no começo do ano. Antes disso, entre setembro e dezembro de 2024 ele havia sido submetido a dois afastamentos cautelares, somando 120 dias, para que fossem apuradas internamente denúncias encaminhadas por funcionários, seguido de férias. Além de assédio moral, ele era acusado ainda de fazer acusações infundadas.

O laudo apresentado pelo funcionário, emitido por médicos que o acompanhavam, comprovou sua aptidão para volta ao trabalho. Não satisfeita, a direção da unidade solicitou a uma junta formada por médicos da rede federal que reavaliassem o avaliarem o documento e esta acabou confirmado o seu resultado, ou seja, ratificou o laudo.

—Não tinha como ter mais nenhuma medida de afastamento (do trabalho) e decide-se então por local afastado e que a chefia seja de um homem — afirmou o diretor-geral.

A partir daí, o alvo deixa de ser as colegas de trabalho e passa a ser a instituição. João entra com processos na Justiça, um deles pedindo que a União revertesse essa movimentação dele dentro do Cefet. O entendimento do parecer judicial, que saiu na terça-feira da semana passada, três dias antes do crime, era de que o Cefet tinha autonomia administrativa e a União não deveria fazer parte da ação.

—Talvez tenha sido gatilho (para o crime) — acredita Maurício Motta.

João Antônio entrou no Cefet em 2014, por meio de concurso público e foi trabalhar na Divisão de Apoio Pedagógico (Diape), ligado aos cursos técnicos. Em 2020, durante um período de intervenção federal na instituição, assumiu a chefia do setor e deu início a uma série de conflitos com a equipe pedagógica, da qual Layse, uma de suas vítimas fazia parte. A equipe procurou a corregedoria da instituição e protocolou uma denúncias de assédio moral contra João.

Com o fim da intervenção assumiu uma outra direção na unidade e ele é transferido , em 2022, para a Divisão de Acompanhamento e Desenvolvimento do Ensino (Dace), onde ele conhece Allane, a outra vítima. Lá os conflitos continuaram, tendo a diretora como principal alvo. Nesse período tem início a uma série de pedidos de licença médica por parte do funcionário, a maioria motivadas por transtornos, como depressão, segundo o diretor-geral do Cefet.