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‘Você perde o filho duas vezes’: entenda o drama de parentes e amigos que choram as mortes de megaoperação

Parentes se concentraram em frente ao Instituto Médico-Legal (IML) Afrânio Peixoto, no Centro, e na Praça São Lucas, na Penha

Agência O Globo - 30/10/2025
‘Você perde o filho duas vezes’: entenda o drama de parentes e amigos que choram as mortes de megaoperação

Vista do alto, a cena de corpos enfileirados em frente a uma creche na Praça São Lucas, também conhecida como Praça do Inter, no Complexo da Penha, impressiona. Chegando mais perto, junto ao chão, o impacto da imagem ganha ainda mais dramaticidade diante das expressões no rosto e dos lamentos de parentes e amigos dos mortos — eles também, vítimas de uma guerra que parece não ter fim.

Com corpos retirados de mata e levados para praça na Penha:

Muro do Bope e confronto na mata:

Uma mulher — a presença feminina entre quem chorava seus mortos em praça pública era predominante —, ao reconhecer o genro entre os mortos, passou mal e precisou ser assistida por parentes e vizinhos. Respiração ofegante, ela começou a tremer e logo depois ficou paralisada, em choque, por pelo menos cinco minutos, enquanto pessoas em volta molhavam seu rosto, a abanavam e tentavam consolá-la.

— Ela está em estado de choque. Está passando muito mal. Ninguém merece passar por isso. Vamos levá-la ao hospital agora. Não é sobre a perda do genro, é sobre a violência geral que enfrentamos — disse a irmã da mulher.

Também consternado, um avô — que criou o neto como filho — contou não ter conseguido ver o cadáver de Jean Alex Santos Campos, o Café, de 17 anos, pois o corpo já tinha sido removido pelo rabecão. O rapaz foi um dos 121 mortos na megaoperação realizada pelas polícias Civil e Militar nos complexos da Penha e do Alemão, a mais letal da história do Estado, realizada na última terça-feira.

Pai Nosso

Aos 63 anos, o homem, que preferiu não ser identificado, contou que o neto gostava de música, sempre foi um bom instrumentista e jogava bola.

— Mas, dentro da comunidade, a gente acaba perdendo para isso aí (aponta para a fila de corpos). Você perde o filho duas vezes: uma quando ele já não consegue mais te escutar (e entra para o crime) e depois quando morre — desabafou, emocionado.

Segundo o homem, ele chegou a infartar recentemente, por causa dos “problemas” do filho, o que o afastou do trabalho.

— Falei com ele a última vez às 4h de ontem (terça-feira, pouco antes do início da operação). Ele disse: “vou me cuidar pai, te amo muito” e mandou um coração. Depois não falou mais nada. Um amigo dele o viu sendo preso. Fomos na Cidade da Polícia ontem, mas o agente informou para a gente voltar hoje. E depois encontramos o corpo dele na mata — completou.

Em dado momento, os moradores rezaram um pai-nosso. Uma família chegou a se ajoelhar ao redor de um dos mortos:

— Como pode destruir tantas famílias, tantas vidas? E ficar por isso mesmo? — perguntou a mãe, enquanto passava a mão no rosto do filho morto.

No IML

Uma mulher, que também preferiu não se identificar, contou que não é parente de nenhum morto, mas que foi prestar solidariedade e ajudar amigos. A cena de tantos corpos reunidos é algo que, ela assegura, nunca viu igual em sua vida, nos 37 anos em que mora no Complexo da Penha.

— Não tem como não se compadecer. A gente quer mostrar a realidade que vivemos aqui. Tem morto com sinal de tortura. Três sem cabeça, outros com facadas, sem dedos. Só faço uma pergunta, para que o governador responda: o que é o certo pra ele? Na minha visão, isso não é certo.

Parentes de mortos na operação também se concentraram em frente ao Instituto Médico-Legal (IML) Afrânio Peixoto, no Centro, na tarde ontem, para dar início à documentação e poder reconhecer os corpos das vítimas para sepultá-los.

Beatriz Nolasco foi até o IML depois de saber que o sobrinho, Yago Ravel Rodrigues, de 19 anos, estava entre as vítimas da megaoperação nos complexos da Penha e do Alemão. Segundo ela o corpo dele foi encontrado na mata, decapitado. Revoltada, Beatriz se exaltou no local onde familiares preenchiam documentos para a liberação dos corpos.

— Meu sobrinho não tinha um tiro no corpo. Arrancaram a cabeça dele e deixaram na mata. Isso foi uma chacina! — disse.

Outro caso é o de uma moradora de Arraial do Cabo, na Região dos Lagos, que relata ter visto o corpo do pai de sua filha de 1 ano e 5 meses estirado no chão da praça no Complexo da Penha. Segundo ela, o cadáver tinha uma perfuração no peito, com machucados grandes na cabeça e numa das pernas.

— Disseram que o corpo pode ser liberado somente amanhã (hoje) ou até depois — relatou a mulher, antes de afirmar que o ex-marido era, sim, envolvido com o Comando Vermelho.