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Ex-diretora de escola na Maré narra em livro como enfrentou a violência: 'Difícil era manter as crianças no chão durante o confronto'

Professora aposentada, Walmyra Tavares conta episódios em que estudantes e pais foram alvejados e bastidores de sua atuação no livro "Memórias de uma diretora escolar"

Agência O Globo - 27/10/2025
Ex-diretora de escola na Maré narra em livro como enfrentou a violência: 'Difícil era manter as crianças no chão durante o confronto'
- Foto: Reprodução / Instagram

Aos 84 anos, Walmyra D’Azevedo Tavares decidiu transformar em livro experiências que marcaram sua vida. A ideia surgiu por incentivo da filha, Mônica Tavares, professora de francês e de língua portuguesa e de amigo e colega de profissão Diógenes Lima. Em "Memórias de uma diretora escolar", publicado no ano passado, a professora aposentada relata os desafios e episódios de violência enfrentados durante duas décadas à frente da escola municipal Operário Vicente Mariano, no Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro. A obra também traz lembranças de conquistas, frustrações, alegrias e tristezas vividos pela educadora na comunidade.

Ao longo do livro, Walmyra descreve situações de risco extremo, em que precisou agir com coragem para proteger alunos, pais e professores. Em um dos relatos, ela revela ter presenciado um confronto armado que feriu estudantes e responsáveis durante uma guerra entre facções rivais, em 2005.

— Estávamos em formação no pátio da escola, cantando o hino nacional, por volta das 7h. Muitas crianças chegavam com os responsáveis quando ouvimos os tiros. Todos correram para se abrigar. Algumas crianças foram atingidas, e um pai foi levado para o Hospital de Bonsucesso. Naquele dia, eu também passei mal — recorda Walmyra.

Ela lecionou no CIEP entre 1992 e 2009, quando foi exonerada do cargo por não se envolver em questões políticas, na época sob a gestão de César Maia.

— As pessoas diziam que eu parecia mais uma inspetora de alunos do que professora, e eu concordava. Minha missão era cuidar daquelas crianças e garantir que a escola fosse um espaço seguro. Não me envolvia em política. Apenas fazia meu trabalho, e isso desagradou muita gente — afirma.

A escola como ilha de proteção

Segundo Walmyra, a maior dificuldade não era enfrentar criminosos armados ou operações policiais, mas manter os alunos em segurança durante os confrontos. Ela conta que, em 1998, traficantes usaram a escola como escudo durante uma perseguição policial, escondendo-se no banheiro enquanto questionavam sua presença.

— A escola era uma ilha. Dentro, tínhamos paz; fora, vivíamos uma guerra. Eu não podia falar nada, senão colocaria a vida das crianças em risco. Convencer os alunos a se protegerem durante os confrontos era o maior desafio. Naquela época a polícia não usava o helicóptero, isso mudou anos depois. Então os agentes entravam na escola para procurar os bandidos porque sabiam que eles costumavam usar o local como escudo — diz.

No livro, no capítulo intitulado “Os Meninos”, Walmyra relata como, recém-chegada à direção em 1992, precisou lidar com traficantes que entraram a cavalo na escola para “testá-la”. Ela havia convocado uma reunião de pais e alunos dias antes e, enquanto as turmas estavam em aula, alguns professores cumpriam horários normalmente, os traficantes entraram pelo portão principal da escola, cavalgando pela rampa do Ciep, e rapidamente se dirigiram ao gabinete que também funcionava como secretaria, fechando a porta e trancando a professora.

"Eles queriam saber quem era Walmyra. A professora Maria Gildenês foi reconhecida de imediato: — É a professora! Olá, tia! A gente sabe que a Walmyra está aqui com você...”, narra o trecho do livro.

Ela precisou explicar aos bandidos por que estava ali e que havia se candidatado à direção da escola. Ela relata: “Eles queriam me testar, então falei: ‘Vocês entraram sem pedir permissão. Eu não entro na casa de vocês sem permissão…’. Tive medo, muito medo, mas não desisti. Meu objetivo era estar ali.”

Em entrevista ao GLOBO, Walmyra explicou que, durante a reunião, deixou claro que enquanto fosse diretora sua responsabilidade era zelar pelo local.

— Disse aos pais que quem mandava da porta da escola para dentro era eu. Isso foi interpretado de firma errada por muitas pessoas.

A notícia se espalhou rapidamente pela comunidade, chegando aos ouvidos do dono da favela, que entendeu que Walmyra aspirava mandar na comunidade e enviou comparsas até a escola para tirar satisfações. O equívoco quase lhe custou a vida.

— Gosto de lembrar desses momentos. Eles moldaram a pessoa que sou. Não escondo tudo que vivi porque foram momentos importantes. Nem todo mundo aguenta da mesma maneira. A rede de proteção existia, mas o apoio do Estado era quase inexistente já naquela época. Os pais e a comunidade ajudavam, acolhiam e zelavam pelas crianças. Nunca houve pergunta da secretaria, nunca perguntaram se estávamos bem depois de sermos alvo de tiros ou confrontos — lamentou ela.

Walmyra detalha ainda o episódio que a marcou profundamente, quando traficantes armados se esconderam na escola durante uma operação policial.

— A polícia entrou na escola e questionou se havia algum ‘vagabundo’ escondido ali, mas se eu dissesse, eles atirariam. Eu não podia revelar nada. Dois traficantes estavam escondidos no banheiro. Eu fiquei na porta segurando tudo para evitar uma tragédia. Dentro da escola, nós recebíamos, acolhíamos, mas era necessário agir com cuidado. Depois que a polícia saiu, os traficantes agradeceram: ‘Tia, valeu. A senhora está guardada'. Isso significava que por agir corretamente com eles, ninguém seria prejudicado.

Essas experiências, segundo a professora, não apenas marcaram sua carreira, mas também moldaram a pessoa que se tornou, e continuam sendo lembradas com orgulho e emoção.

Entre medo e respeito

Walmyra ressalta que, mesmo em meio a situações de risco, havia um código de respeito: — Os pais sempre avisavam quando a favela estava perigoso ou algo estava para acontecer. Não existia internet, redes sociais, tudo era feito de boca a boca. Existia uma confiança na minha gestão. Então, se eu falasse que não era seguro abrir a escola, a gente não abria. E todo mundo respeitava isso.

A professora também destaca a importância da rede de proteção que existia na comunidade: pais, mães e vizinhos ajudavam a manter a segurança dos alunos, em meio à ausência de apoio efetivo do Estado.

— Nem todos aguentam a pressão da mesma forma. Muitas direções antigas tentavam segurar essa rede de proteção. Mas o apoio do Estado era quase inexistente. Só quem vive isso sabe o impacto — diz ao completar que o maior desafio durante os confrontos na escola, não era enfrentar os criminosos armados nem as operações policiais, mas convencer os alunos a ficarem no chão e se protegerem corretamente:

— O mais difícil de tudo não era o bandido armado, muito menos encarar as operações. O mais difícil era convencer as crianças a ficarem no chão durante o confronto. Elas não entendiam o que estava acontecendo, que mesmo na escola corriam risco de vida. De alguma forma, eu e as outras professoras tentávamos blindá-los do perigo constante.

Para Walmyra, os episódios de tensão e risco ajudaram a moldar a pessoa que se tornou.

— Gosto de lembrar desses momentos. Eles foram importantes. Não escondo nada porque cada experiência contribuiu para minha trajetória e para a forma como vejo a educação — conclui.