RJ em Foco
Rio em guerra: trabalhadores vivem rotina de medo para manter a cidade de pé
Médicos, professores e motoristas convivem com o medo diário nas áreas conflagradas do Rio e relatam traumas, afastamentos e desistências da profissão
A rotina de quem vive em áreas conflagradas na cidade do Rio envolve a tensão constante de, a qualquer momento, ficar na linha de tiro. Para outras pessoas, essas localidades precisam ser acessadas por conta do trabalho. Em hospitais, escolas e ao volante, profissionais convivem com sons de tiros, risco de invasões armadas, tentativas de coação por criminosos e o medo permanente de não voltar para casa. Esses profissionais não usam farda nem arma: eles atuam no front da guerra urbana envergando, em sua maioria, jalecos ou uniformes.
Pai de menina morta
Cem disparos em dois minutos:
Diante do perigo iminente, trabalhadores solicitaram, este ano, transferência e licença motivados por trauma. Em casos mais graves, houve quem desistisse da carreira. O GLOBO conta a história, hoje, de pessoas como uma professora de Matemática com mais de 15 anos de carreira que, após ser coagida a revisar a contabilidade de uma facção criminosa, passou a tomar remédios controlados e precisou se afastar das salas de aula.
Ou a do enfermeiro que, durante o plantão na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Costa Barros, na Zona Norte do Rio , teve de se manter em pé para salvar um paciente, enquanto as balas cruzavam a rua. Depois desse episódio, ele pediu transferência. A UPA, atualmente fechada, tem previsão de reabertura amanhã pela prefeitura.
A Secretaria municipal de Saúde (SMS) calcula que este ano, até o último dia 15, unidades de atenção primária precisaram ser fechadas mais de 780 vezes por conta de confrontos. O Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio (Cremerj) estima ao menos 20 casos de violência urbana contra médicos na última década, número considerado alto na avaliação da entidade.
Uma das vítimas foi a médica da Marinha Gisele Mendes de Souza e Mello, que morreu após ser atingida por um tiro na cabeça dentro do Hospital Naval Marcílio Dias, no Lins, em dezembro do ano passado.
Já para motoristas de aplicativo, o grande temor é entrar, por engano ou não, em uma área conflagrada. Foi uma situação como essa que levou um profissional, que prefere não ter o nome divulgado, a desistir da atividade. Este ano, ele teve o carro roubado — e devolvido, sujo de sangue — e foi ameaçado de morte ao cruzar uma barricada.
Quem dirige ônibus também sofre com a violência. Paulo Valente, porta-voz do RioÔnibus, conta que há casos de pedido de mudança de linha e afastamento do trabalho, ambos por questões psicológicas causadas pela violência. Para ele, o “cenário de risco dificulta a contratação de mão de obra”.
Grande desafio
O secretário de Segurança Pública do estado, Victor Santos, admite que a situação “representa um grande desafio” no estado. Nas unidades de saúde, um canal de comunicação direto entre a SMS e os órgãos de segurança foi criado para episódios de violência. Além disso, a pasta afirma que tem reforçado o policiamento nas áreas mais sensíveis.
“Nenhum serviço essencial pode ficar vulnerável a disputas entre facções. A Polícia Civil mantém as investigações sobre invasões a hospitais e interrupções de serviços”, diz Santos em nota.
Sobre a violência nos transportes, o secretário afirma atuar em duas frentes: através de investigações, coibindo extorsões e ataques a ônibus, e intensificando o patrulhamento nos corredores estratégicos.
Já nas escolas, tanto na rede municipal quanto na estadual, ele diz que há comunicação direta com as secretarias de Educação. Segundo o secretário, quando ocorrem operações planejadas, “as unidades são avisadas antecipadamente, visando reduzir riscos e proteger alunos e profissionais”. “Essa troca de informações tem sido fundamental para minimizar impactos e garantir a segurança”, explica.
A rotina de quem ensina em meio à tensão urbana
A trajetória de uma professora de Matemática com mais de 15 anos de ensino em uma comunidade da Zona Sudoeste foi interrompida pela violência no início deste ano. Ao sair da escola, ela foi abordada por um grupo de traficantes, incluindo um ex-aluno: “Tia, vem com a gente, precisamos da senhora para desenrolar um bagulho aqui”.
Escoltada até uma casa na favela, os criminosos tentaram fazer a professora revisar cadernos de contabilidade do tráfico para confirmar se um homem que cuidava das finanças da facção estava desviando dinheiro, antes que o “tribunal do tráfico” o executasse.
— Fiquei com muito medo. Eu chorava e pedia para ir embora. Disse que não poderia fazer. Falei que eu não me envolvia com isso — recorda-se a professora.
Diante da recusa, os criminosos a pressionaram, usando a escola como ameaça: “Tia, se não for a senhora, alguém da escola vai ter que fazer. Senão o bagulho vai ficar doido”.
A professora solicitou transferência imediata, mas o trauma foi inevitável. Hoje, ela está afastada, tratando uma crise de ansiedade.
Em apenas três anos (2023 a agosto de 2025), a violência armada impactou as aulas de quase 500 mil alunos da rede municipal do Rio. E, segundo o programa Acesso Mais Seguro, da Secretaria municipal de Educação (SME), anualmente mais de 440 unidades escolares são atingidas.
Em 2023, foram cerca de 166,5 mil alunos atingidos, com a Cidade de Deus no topo. Em 2024, o número subiu para 180,1 mil, liderado pelo Complexo da Maré. Em 2025, o Complexo do Chapadão já é o mais afetado e a cidade teve 150,7 mil alunos impactados até agosto.
Colégio usado de escudo
Walmyra D’Azevedo Tavares, de 84 anos, dedicou duas décadas à direção do Ciep Operário Vicente Mariano, no Complexo da Maré. No ano passado, já aposentada, publicou o livro “Memórias de uma diretora escolar”, em que descreve episódios difíceis de violência. Num trecho da obra, ela conta que, durante um confronto entre facções, presenciou alunos e pais serem alvejados:
“Estávamos em formação no pátio da escola. Era por volta das 7h. Muitas crianças estavam chegando quando ouvimos disparos. Todo mundo correu. Algumas crianças foram atingidas na perna, e um pai foi baleado. Eles foram levados para o Hospital de Bonsucesso. Naquele dia, eu também passei mal”.
A escola chegou a ser usada como refúgio pelos traficantes. Em 2005, durante uma operação policial, bandidos armados se esconderam no banheiro da unidade para fugir da perseguição, forçando Walmyra a encarar os agentes que questionavam a presença de criminosos ali. A ex-diretora afirma que o trauma maior era psicológico:
— A escola era uma ilha. Do lado de dentro tínhamos paz, enquanto no entorno vivíamos uma guerra. O mais difícil de tudo não era o bandido armado, muito menos encarar as operações. O mais difícil era convencer os alunos a ficarem no chão durante o confronto. Eles não entendiam que, mesmo na escola, corriam risco de vida.
Já a professora Helaine Cristiana Alves Santos, que também leciona no Complexo da Maré, não raro encontra ex-alunos armados com fuzis na comunidade. Para ela, o drama da educação em áreas de risco passa pelo que classifica como falta de suporte:
— Eu sou consciente de que o professor sozinho não dá conta. É importante que o Estado realmente venha efetivamente com uma política de valorização da escola pública.
O secretário municipal de Educação, Renan Ferreirinha, concorda:
— É extremamente lamentável que, todos os dias, tenhamos que analisar o território para saber se uma escola pode funcionar ou não por causa da violência. Cada dia que não pode ter aula é uma tragédia.
Em defesa da saúde e na mira do crime organizado
O profissional que veste o jaleco branco em áreas de risco do Rio fica, muitas vezes, na mesma linha de tiro de quem usa o colete à prova de balas. Só este ano, entre janeiro e o último dia 15, clínicas da família e postos de saúde precisaram fechar 784 vezes devido à violência armada — quase três interrupções por dia. Mas nenhum dado traduz o som do medo que acompanhou o trabalho de um enfermeiro na UPA de Costa Barros, na Zona Norte do Rio.
No primeiro semestre deste ano, ele atendia um paciente ferido quando um tiroteio começou nas imediações do Complexo da Pedreira, dominado pelo Terceiro Comando Puro (TCP). As balas cruzavam a rua e o barulho ecoava dentro das salas da UPA. Em pânico, os pacientes se jogaram no chão, mas ele e os colegas não podiam se abaixar: cada segundo de exposição aos disparos era uma aposta com a própria vida.
— A gente não podia parar o procedimento. Ali, em pé, era o paciente ou eu, e fizemos um juramento. Foi desesperador. Tenho filhos e esposa, e cheguei a pensar que não voltaria para casa — relata o profissional, que conseguiu transferência e pediu para não ser identificado.
No município, funcionários seguem o programa Acesso Mais Seguro, criado em 2009 com a Cruz Vermelha: trata-se de um “protocolo de guerra” que orienta unidades de saúde e escolas sobre abrir, manter ou suspender atividades diante de confrontos.
A UPA de Costa Barros está fechada desde 30 de setembro, quando criminosos invadiram a unidade e levaram, por engano, dois pacientes internados, acreditando que um rival baleado estava sendo atendido — eles chegaram a sequestrar uma ambulância. Uma semana antes, uma operação na Pedreira resultou em um carro de uma médica da UPA atingido por disparos.
Funcionários foram orientados a colar adesivos nos carros, para identificar que trabalham na unidade.
— Quem não faz isso corre risco. Quem manda são eles — diz o enfermeiro.
Só nessa unidade, 78 baleados deram entrada entre janeiro e setembro de 2025, 69% a mais do que em todo o ano passado. Na rede municipal, até o último dia 22, foram 855 atendimentos a baleados.
Ainda em setembro, 13 horas antes de homens armados invadirem o Hospital Municipal Pedro II, em Santa Cruz, na Zona Oeste, atrás de um paciente baleado, a equipe de enfermagem relatou tensão e coação durante o plantão.
— O paciente chegou acompanhado. Eles falaram: ‘ninguém mete a mão no celular’ — conta uma enfermeira.
Integridade sob ataque
Desde 2023, a SMS aponta em documentos, aos quais o GLOBO teve acesso, a falta de agentes de segurança fixos em postos de urgência e emergência. Ofícios enviados à Polícia Militar e à Secretaria de Segurança Pública (Sesp) pediam recomposição de postos e viaturas em unidades, alertando para o risco à integridade de servidores e pacientes.
— Precisamos de uma posição da Secretaria de Segurança e de medidas concretas. Na última quinta, um tiroteio atingiu três vezes a clínica da Fazenda Botafogo e deixou pacientes e funcionários em pânico — afirma Daniel Soranz, secretário municipal de Saúde do Rio.
A PM respondeu que o município pode recorrer a 150 vagas diárias do Programa Estadual de Integração na Segurança (Proeis), com policiais voluntários pagos pela prefeitura. Além disso, informou que a região de Costa Barros está ocupada por tempo indeterminado e que “mantém diálogo aberto com a população e com instituições públicas, incluindo a Secretaria municipal de Saúde, para assegurar a prestação do serviço de saúde pública acessível a todos”.
Já a Sesp disse “intensificar ações integradas” e um “planejamento conjunto com os comandos das polícias Civil e Militar” para enfrentar o problema.
Armas e barricadas aterrorizam motoristas
Quem está de passagem também não fica imune aos problemas de regiões sob domínio do crime organizado. Um motorista de aplicativo, que preferiu não se identificar, não quer mais trabalhar ao volante, devido a sucessivos traumas.
O primeiro episódio ocorreu numa madrugada de abril, quando levava passageiros para Madureira. Ao passar nas imediações do Morro do Fubá, em Cascadura, quatro homens com fuzis pararam seu carro, obrigando todos a desembarcar.
Assustadas, as vítimas fugiram. Em seguida, já em segurança, uma consulta à localização do veículo indicou que ainda estava na região onde foi roubado. O motorista, então — o carro era sua única fonte de renda e o ressarcimento do seguro poderia demorar — , foi tentar recuperar o bem. No morro, foi abordado por moradores, que ajudaram a acionar os criminosos. Àquela altura, o automóvel estava numa localidade chamada Fim do Mundo.
— Por volta das 4h, um cara disse que os bandidos me autorizaram a pegar o carro. Me ensinaram a subir o morro a pé. Eu fiquei com medo, porque não tinha uma alma na rua — relata o motorista, recebido por um suspeito. — Passou pela minha cabeça que iam me matar, fiquei desesperado, mas o traficante devolveu tudo e avisou que o carro estava sujo de sangue.Banco, painel e tapete do carona estavam cobertos de vermelho.
Desde então, ele mudou sua área de atuação. Mas, três meses depois, viveu outro apuro ao cruzar uma barricada na Penha,após uma viagem.
Dois homens armados ordenaram que ele desembarcasse, o interrogaram e revistaram o carro. Foi preciso ainda se justificar, por rádio, com um “chefe” local e ouvir palavrões. Agora, ele desistiu do ofício:
— Estou fazendo de tudo para nunca mais voltar.
Até a última quarta-feira, 17 motoristas de aplicativo foram baleados na Região Metropolitana do Rio, segundo o Instituto Fogo Cruzado. Doze morreram. Entregadores, motoboys e mototaxistas também são alvo: 13 foram baleados em 2025, com seis mortes.
A Amobitec, associação que representa o setor, ressalta que plataformas investem na busca por mais proteção nas viagens e que acompanha casos de restrição de acesso em áreas do Rio, sendo “favorável a iniciativas do Poder Público paracoibir a violência”.
Terror nos coletivos
Outro retrato da violência são os ônibus que têm chaves tomadas por criminosos, após serem atravessados na rua para atrapalhar operações policiais. Neste ano, isso já aconteceu com 146 coletivos na capital, número 30% maior que no mesmo período do ano passado (112), segundo dados do RioÔnibus.
Atualmente, a área com mais casos fica nas imediações dos complexos do Chapadão e da Pedreira, região atendida pela linha 920 (Bonsucesso—Pavuna), a que foi mais vezes feita de barricada em 2025: sete ocasiões.
Um grupo no WhatsApp foi criado para os motoristas se comunicarem e, em dias de tiroteio, desviarem a rota. A bordo, esse é só mais um temor.
— Andei tendo gastrite, e o médico falou que é culpa do estresse da linha em que trabalho — conta um motorista da 920, que já teve o ônibus atingido por tiros. — Vemos muita gente armada. Já entraram no meu ônibus com fuzil e tudo.
Há um ano, outro motorista foi obrigado a deixar passageiros da linha 721 (Vila Cruzeiro—Cascadura) a pé, para levar um grupo a um protesto, por ordem de criminosos:
— Levei o ônibus até a Glória, sob ameaça, e tive de esperar para trazer de volta.
Este ano, 338 motoristas solicitaram afastamento da função na capital, por trauma causado pela violência, segundo Sebastião José, presidente do Sindicato dos Rodoviários. É mais de um caso por dia. A entidade também ampliou a oferta de atendimento psicológico a rodoviários e seus parentes: antes, eram 25 por semana. Agora, são 60.
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