Poder e Governo
Igualar facção a terrorismo abre brecha para inibir investidor e punir vítima, mostram casos no exterior
Discussão no Congresso para enquadrar facções na Lei Antiterrorismo pode gerar efeito dominó, dizem especialistas
A discussão no Congresso para enquadrar facções criminosas na Lei Antiterrorismo pode gerar um efeito dominó, na avaliação de especialistas, que inclui inibir a atuação de empresas multinacionais em cidades como Rio e São Paulo e deixar ainda mais vulneráveis pessoas que são vítimas da atuação do tráfico. A equiparação é debatida em um projeto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. O texto foi encampado pela oposição na esteira da megaoperação que deixou 121 mortos no Complexo do Alemão e da Penha e faz frente ao PL antifacções, enviado pelo governo ao Legislativo na semana passada.
Uma consequência da nova classificação é que instituições financeiras e empresas multinacionais costumam adotar parâmetros mais restritos de atuação em locais onde há a presença de grupos terroristas. No caso da capital fluminense, que tinha 18% de seu território sob domínio de grupos armados no ano passado, segundo estudo da Universidade Federal Fluminense (UFF), classificar essa atividade como “terrorismo” pode restringir a abertura de escritórios e a chegada de profissionais estrangeiros na cidade.
O que define “terrorismo”? A legislação brasileira, de 2016, menciona “atos praticados por xenofobia, discriminação ou preconceito” racial e religioso, com o objetivo de perturbar a “paz pública”. Já o Conselho de Segurança da ONU também cita ações que tenham o objetivo de “intimidar a população ou forçar um governo” a determinada medida, por motivos “políticos”.
O que pode mudar na lei? Um projeto na Câmara pretende incluir, entre os atos considerados terroristas, aqueles que imponham “domínio ou controle de área territorial”. A definição passaria a abarcar, assim, grupos como o PCC e o Comando Vermelho, cuja atuação é associada ao tráfico de drogas, mas que ao longo do tempo passaram se impor em parcelas do território.
Qual é o impacto da mudança? Para especialistas, a alteração se somaria a outras formas já existentes pelas quais os governos podem punir facções criminosas. Por outro lado, poderia deixar empresas e populações submetidas a essas facções também vulneráveis a sanções. Outra brecha, segundo pesquisadores, é para intervenções de países como os EUA.
Outro efeito colateral é que o pagamento da chamada “taxa de proteção”, método de extorsão de grupos criminosos em áreas sob seu domínio — e que hoje, na lei brasileira, só gera punição a quem extorque —, poderia ser enquadrada como “financiamento ao terrorismo”, o que coloca indivíduos e empresas na mira de sanções de países como os Estados Unidos.
Em um caso que virou parâmetro no mundo, a multinacional francesa Lafarge, que atua no ramo de cimento, responde a um processo judicial no seu país de origem após admitir ter financiado entidades ligadas ao Estado Islâmico. Segundo a empresa, os pagamentos foram necessários para manter sua atividade na Síria e impedir retaliações do grupo a seus funcionários.
Para evitar sanções americanas, a empresa fechou um acordo em 2022 e pagou quase US$ 800 milhões em indenização ao governo dos EUA, que classifica o Estado Islâmico como “organização terrorista internacional”.
Outro episódio similar envolveu, em 2007, a multinacional americana Chiquita Brands, uma das principais exportadoras de bananas. A empresa pagou US$ 25 milhões em multa após admitir ter feito pagamentos a um grupo paramilitar colombiano designado como “terrorista” pelos EUA. A empresa alegou que a “falta de pagamentos poderia resultar em danos físicos” a seus funcionários e propriedades na Colômbia.
Diferentes definições
A própria definição do que é “terrorismo” tem divergências. O Conselho de Segurança da ONU classifica como atos terroristas aqueles “praticados com a intenção de provocar morte, ferimentos graves ou a tomada de reféns”, e que vislumbrem “intimidar a população ou forçar um governo ou organismo internacional” a agir de acordo com os interesses do grupo. O texto menciona a natureza “política, filosófica, ideológica, racial, étnica ou religiosa” envolvendo esses atos, ainda que esses fatores “em nenhuma circunstância os tornem justificáveis”.
Já a Lei Antiterrorismo brasileira, de 2016, menciona atos praticados “por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”, e que tenham o objetivo de “provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”. O projeto em tramitação na Câmara, de autoria do deputado Danilo Forte (União-CE), pretende incluir a frase “para impor domínio ou controle de área territorial” a essa definição, o que passaria a englobar a atividades de grupos como o Comando Vermelho (CV) e o PCC.
— O terrorismo tem um componente político e ideológico, enquanto a criminalidade está mais preocupada com a questão financeira. Ainda que as facções usem táticas terroristas que amedrontam a população, não significa que o grupo em si seja terrorista. E vale lembrar que o PCC, por exemplo, já está na lista de sanções dos EUA, por sua atuação no tráfico internacional de drogas —apontou o professor do programa de Relações Internacionais da PUC Minas, Jorge Lasmar.
Segundo o pesquisador, a mudança na lei pode não alterar, na prática, a capacidade de governos estrangeiros de punirem essas facções. Por outro lado, o texto traria uma série de impactos para empresas e pessoas físicas no Brasil.
A legislação prevê, por exemplo, que acidentes provocados por “ato de sabotagem ou terrorismo” em ambiente de trabalho são de responsabilidade do empregador; não há essa previsão para episódios envolvendo facções. Lasmar afirma também que seguradoras de automóveis costumam excluir atos terroristas da cobertura de suas apólices, que normalmente contemplam assaltos e crimes comuns.
— No Rio, onde o CV exerce um tipo de governança criminal territorial, que cobra uma taxa de proteção de condomínios, de pequenos negócios, a lei estabelecerá que esses atores vão estar financiando terrorismo? Isso também afetaria a reputação brasileira, passando a imagem de país dominado por grupos terroristas — diz Lasmar.
Coordenador do curso de Relações Internacionais no Ibmec, Renato Galeno também avalia que a mudança de classificação das facções criminosas pode acender o alerta no setor de compliance de empresas transnacionais, que costumam limitar a presença de funcionários em áreas sujeitas a grupos terroristas.
— Grandes empresas que atuam no mercado de petróleo, por exemplo, tomam o cuidado de destacar um pessoal específico para atuar em áreas conflagradas. Isso poderia ser um problema para esse tipo de investimento em um estado como o Rio. Além disso, qualquer empresa de capital aberto teria mais dificuldade para convencer investidores a colocar recursos onde a própria lei nacional indica que há o domínio de grupos terroristas —afirmou.
Galeno avalia ainda que a classificação de grupos como terroristas pode servir de pretexto para intervenções estrangeiras, um dos fatores que preocupam o governo Lula com a possível mudança da legislação.
Divergência de governos
Os EUA adotam três tipos de punição ao terrorismo. Há uma lista de “Estados patrocinadores” de terroristas, em que o governo americano inclui Venezuela e Irã. Também há sanções para “organizações terroristas”, alvos de bloqueio de bens e de restrições migratórias mais duras; a lista inclui os principais cartéis mexicanos e da América Central. Já a lista dos “terroristas designados” é usada pelo Tesouro americano para punir pessoas ou empresas que forneçam “suporte” aos sancionados.
Segundo Galeno, a inclusão de grupos da Venezuela nas listas de terrorismo, caso da facção Tren de Aragua e do cartel Los Soles, foi usada pelo governo Trump como lastro para bombardear embarcações na costa do país.
— Quando se trata de atingir um grupo terrorista, esse tipo de ação gera menor resistência na comunidade internacional — avaliou.
Na contramão do governo Lula, governadores de Rio e São Paulo cobram o rótulo de “terroristas” a facções baseadas em seus estados. O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) disse que o PCC “está se impondo pelo terror” em São Paulo. Já Cláudio Castro (PL) argumentou à embaixada dos EUA, conforme noticiou a colunista do GLOBO Malu Gaspar, que o CV se encaixa no critério para “designações terroristas”.
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