Mundo Científico

Cozinhar vivo é cruel? Estudo brasileiro mostra sensibilidade de lagostas e camarões

Declaração da Alianima reúne evidências científicas de que crustáceos podem sentir dor, reacendendo debate sobre práticas de manejo e consumo

Agência O Globo - 05/12/2025
Cozinhar vivo é cruel? Estudo brasileiro mostra sensibilidade de lagostas e camarões
Cozinhar vivo é cruel? Estudo brasileiro mostra sensibilidade de lagostas e camarões - Foto: Reprodução /gov

Em 2003, o escritor norte-americano David Foster Wallace visitou o Maine Lobster Festival, nos Estados Unidos, para uma reportagem da revista Gourmet. O evento, que reúne pescadores e chefs para preparar toneladas de lagosta, trouxe à tona uma questão ética antiga e pouco discutida: o cozimento de animais vivos para consumo. O ensaio resultante, publicado em 2004 sob o título Considere a lagosta, questionava se ferver seres sencientes por prazer gastronômico pode ser considerado moralmente aceitável.

Duas décadas depois, o debate ressurge com a Declaração de Senciência em Crustáceos, lançada em dezembro pela organização brasileira Alianima e assinada por 35 especialistas nacionais e internacionais. O documento reúne décadas de estudos neuroanatômicos, comportamentais e farmacológicos, indicando que camarões, lagostas e outros crustáceos são capazes de sentir dor, experimentar sofrimento e apresentar respostas complexas a estímulos nocivos.

Segundo a Revista Super, a produção global de crustáceos impressiona: cerca de 440 bilhões de camarões são cultivados anualmente. Esse número, somado à pesca extrativa, pode alcançar trilhões de animais mortos por ano. Apesar disso, políticas de bem-estar animal raramente contemplam esses invertebrados, devido à distância evolutiva em relação aos humanos e à ausência de sinais evidentes de sofrimento, como vocalizações ou expressões faciais.

No entanto, pesquisas recentes apontam para sistemas sensoriais sofisticados nesses animais, capazes de detectar calor, choques elétricos e outros estímulos prejudiciais. Comportamentos como esfregar áreas lesionadas ou alterações sob anestesia sugerem sensibilidade à dor. Estudos também revelam capacidades cognitivas complexas, incluindo aprendizado, memória, tomada de decisão, cuidado parental e até diferenças de personalidade.

Para especialistas como Caroline Maia, da Alianima, as evidências são contundentes. “Esses animais aprendem a evitar situações dolorosas, ajustam seus comportamentos e podem sofrer estresse prolongado. Não podemos ignorar isso”, afirmou à Super. Organizações internacionais como a RSPCA e a British Veterinary Association já passaram a incluir invertebrados aquáticos em suas recomendações de manejo, embora mudanças mais amplas na indústria enfrentem desafios logísticos e econômicos.

A discussão sobre o sofrimento de crustáceos, já levantada por filósofos como Jeremy Bentham e escritores como Wallace, volta ao centro do debate: a questão fundamental não é se os animais raciocinam ou falam, mas se são capazes de sofrer. Como refletiu Wallace, “por que uma forma primitiva e inarticulada de sofrimento é menos urgente ou desconfortável para quem a inflige ao pagar pela comida resultante?”