Internacional

Manual para navegar no escuro e rede de comunicação: documentos do Hamas revelam estratégia de batalha em túneis

Datado de 2019, material apreendido pelas forças israelenses detalha instruções dadas aos comandantes do grupo terrorista e indica sofisticação das construções

Agência O Globo - GLOBO 03/09/2024
Manual para navegar no escuro e rede de comunicação: documentos do Hamas revelam estratégia de batalha em túneis

O manual do grupo terrorista Hamas para combate subterrâneo descreve, em detalhes meticulosos, como navegar na escuridão, mover-se furtivamente sob Gaza e disparar armas automáticas em espaços confinados para máxima letalidade. Os comandantes de campo foram instruídos até mesmo a cronometrar quanto tempo levava para seus combatentes se deslocarem entre vários pontos por baixo do enclave.

Fortaleza subterrânea: Extensão, profundidade e qualidade de túneis do Hamas em Gaza surpreendem Israel

Vídeo: Israel mostra túnel de 55 metros utilizado pelo Hamas sob o maior hospital de Gaza

Datado de 2019, o documento foi apreendido pelas forças israelenses e analisado pelo New York Times. Ele fazia parte de um esforço de anos do Hamas – muito antes do ataque sem precedentes de 7 de outubro, que desencadeou a guerra atual – para construir uma operação militar subterrânea que pudesse suportar ataques prolongados e desacelerar as forças terrestres de Israel dentro dos túneis escuros.

Um ano antes de atacar o território israelense, Yahya Sinwar, o líder do Hamas na Faixa de Gaza, aprovou o gasto de R$ 1,2 milhão para instalar portas blindadas para proteger a rede de túneis do grupo contra ataques. O documento de aprovação dizia que os comandantes do grupo tinham analisado os túneis sob Gaza e identificado locais críticos no subsolo e na superfície que precisavam de fortificação.

Oficiais israelenses passaram anos procurando e desmontando túneis que o Hamas poderia usar para invadir Israel, mas avaliar a rede subterrânea dentro de Gaza não era uma prioridade, segundo um alto oficial israelense, porque uma guerra em grande escala na região parecia improvável. Enquanto isso, porém, o Hamas estava se preparando exatamente para este confronto.

O manual de combate subterrâneo contém instruções sobre como camuflar as entradas dos túneis, localizá-las com bússolas ou GPS e mover-se com eficiência. Somados às entrevistas com especialistas e comandantes de Israel, os registros ajudam a explicar por que razão o Exército israelense tem tido dificuldade em alcançar seu objetivo de desmantelar o Hamas. Se não fossem os túneis, dizem, o grupo terrorista teria tido poucas chances contra as forças do Estado judeu.

“Enquanto se move na escuridão dentro do túnel, o combatente precisa de óculos de visão noturna equipados com infravermelho”, explica o documento, originalmente escrito em árabe. As armas devem ser automáticas e disparadas a partir do ombro. “Este tipo de disparo é eficaz porque o túnel é estreito, então os tiros são direcionados para áreas mortais na parte superior do corpo humano”.

Táticas de guerra

Embora israelenses já soubessem, antes da guerra, que o Hamas tinha uma grande rede de túneis, ela provou ser mais sofisticada e extensa do que eles imaginavam. No início do conflito atual, a estimativa era a de que a rede se estendia por cerca de 400 quilômetros. Agora, acreditam que as construções podem ter o dobro desse tamanho – e continuam a descobrir novos túneis. Apenas na semana passada, o Exército israelense resgatou um cidadão árabe beduíno de Israel que foi encontrado num desses locais, e outros seis reféns foram achados mortos em outro túnel.

Os registros mostram como ambos os lados tiveram que adaptar suas táticas na guerra. Assim como Tel Aviv subestimou os túneis, o Hamas se preparou para batalhas subterrâneas que não se concretizaram. O Exército israelense esteve relutante, especialmente no início da guerra, em enviar tropas para o subsolo, onde poderiam entrar em combates. O grupo terrorista tem feito emboscadas para soldados perto das entradas dos túneis, evitando confrontos diretos.

Isso deixou o Hamas com mais abertura para usar os túneis para lançar ataques aéreos, esconder-se das forças israelenses e detonar explosivos usando acionadores remotos e câmeras escondidas, de acordo com militares israelenses e com uma revisão de fotos e vídeos do campo de batalha. Essas manobras têm desacelerado o ataque de Israel, embora seu Exército ainda tenha dizimado fileiras do grupo, expulsando terroristas dos locais que investiram tanto para construir.

Membros das Forças Armadas de Israel descobriram o documento de guerra no distrito de Zeitoun, na Cidade de Gaza, em novembro. Uma carta de Sinwar a um comandante militar foi encontrada no mesmo mês no sul da cidade. Os documentos foram disponibilizados ao The Times por oficiais militares israelenses. Um alto funcionário do Hamas recusou-se a comentar. Sinwar, o alvo mais valioso de Israel, é suspeito de gerenciar a guerra e de evitar sua captura a partir de um túnel.

Após greve: Netanyahu pede perdão pela 1º vez em público às famílias de reféns e promete 'forte reação' contra o Hamas

As marcas nos documentos são consistentes com outros materiais do Hamas que foram tornados públicos ou examinados pelo The Times. E soldados israelenses descreveram detalhes, como entradas de túneis camufladas e portas blindadas recentemente instaladas, que são consistentes com os documentos do grupo. O material também menciona o uso de detectores de gás e óculos de visão noturna, equipamentos que as forças israelenses encontraram dentro dos túneis.

— A estratégia de combate do Hamas é baseada em táticas subterrâneas — disse Tamir Hayman, antigo chefe da inteligência militar de Israel. — Esta é uma das principais razões pelas quais eles conseguiram resistir às Forças Armadas de Israel até agora.

'Metrô de Gaza'

Desde o início da guerra, muito tem sido revelado sobre a rede subterrânea que tem sido chamada de “Metrô de Gaza”. O Hamas usa alguns túneis rudimentares simplesmente para efetuar ataques, e o manual de combate descreve como as pessoas devem manobrar nesses estreitos corredores na escuridão: com uma das mãos na parede e a outra no combatente à frente.

Outros túneis são sofisticados centros de comando e controle ou artérias que conectam fábricas de armas subterrâneas a depósitos, ocultando toda a infraestrutura militar do Hamas. Em alguns casos, o grupo usou painéis solares instalados em casas de civis para fornecer energia subterrânea. Outros túneis servem também como centros de comunicação. No ano passado, Israel descobriu um sistema de telecomunicações Nokia por baixo da sede da agência da ONU para os refugiados palestinos.

Esses sistemas da Nokia fornecem serviços de voz e dados, de acordo com o manual obtido pelo The Times, e poderiam ter funcionado como central para uma rede de comunicação subterrânea. As funcionalidades, porém, requerem hardware adicional – e não está claro quais capacidades o Hamas tinha.

O grupo terrorista é conhecido por manter reféns israelenses no subsolo, então cada túnel precisa ser investigado e limpo, dizem oficiais do Estado judeu. Destruir uma seção de túnel pode levar cerca de 10 horas e precisar de dezenas de soldados, segundo um oficial israelense. Em 2023, o Exército de Israel descobriu um túnel com 76 metros de profundidade – cerca da altura de um prédio de 25 andares. As forças israelenses demoraram meses para destruir a construção.

— Não é exagero de forma alguma. Os túneis impactam o ritmo das operações — disse Daphné Richemond-Barak, especialista em guerra de túneis da Universidade de Reichman, em Israel. — Você não pode avançar, não pode garantir o terreno. Você está lidando com duas guerras. Uma na superfície e outra no subsolo.

Um oficial israelense disse que, à medida que os soldados se aproximavam dos túneis, o Hamas por vezes explodia os tetos, causando desabamentos que bloqueavam o caminho. Outro oficial de Israel afirmou que poderia levar anos para destruir toda a rede de túneis, que viraram o principal alvo da liderança militar israelense, apesar do custo elevado para os civis palestinos, já que muitos desses túneis passam por baixo de áreas densamente povoadas.

Despesa e sofisticação

O Exército de Israel estima que custa ao Hamas cerca de R$ 1,6 milhão para construir um túnel rudimentar com cerca de meio quilômetro. Richemond-Barak disse que a carta de Sinwar destacou a despesa e a sofisticação por trás do esforço. O documento foi escrito para Muhammad Deif, chefe militar do grupo, apontado como um dos arquitetos do ataque de 7 de outubro e morto em um ataque aéreo em julho. Não está claro quando o Hamas completou sua revisão dos túneis ou se isso foi feito em conexão com o planejamento do ataque.

Sinwar escreveu que “as brigadas receberão o dinheiro de acordo com o nível de importância e necessidade”. A carta poderia indicar onde o grupo antecipava os combates mais difíceis. O líder do Hamas autorizou mais dinheiro para o norte de Gaza e Khan Younis – áreas onde, de fato, os combates mais intensos ocorreram. Para Ralph Goff, antigo funcionário da CIA que serviu no Oriente Médio, o sistema de túneis do grupo era “um elemento essencial de seu plano de batalha original”.

Após descoberta de corpos de reféns em Gaza: Greve geral em Israel pressiona governo a alcançar acordo de cessar-fogo

Não está claro quando o Hamas começou a usar as portas blindadas, as Richemond-Barak afirmou que a forte dependência delas é algo novo. A especialista não estava ciente do uso deste recurso pelo grupo durante a guerra de 2014 com Israel.

As portas blindadas selam segmentos dos túneis, protegendo as construções contra bombardeios. Elas também dificultam o uso de drones pelo Exército para inspecionar e mapear os túneis. Militares de Israel se depararam repetidas vezes com portas blindadas enquanto limpavam os túneis. Apesar das táticas descritas, os soldados raramente encontram combatentes do grupo nesses locais. Eles fugiram, refletindo uma estratégia de ataque e retirada que se tornou comum.