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'Cessão de ativos estratégicos': Milei avança com sua primeira grande privatização na Argentina

03/12/2025
'Cessão de ativos estratégicos': Milei avança com sua primeira grande privatização na Argentina
Foto: © AP Photo / Rebecca Blackwell

A Casa Rosada aceitou oficialmente as propostas para a venda de quatro usinas hidrelétricas localizadas na Patagônia. Para o governo, a notícia confirma "o interesse do setor privado em investir na Argentina". "Para o governo, é um passo importante porque garantiu os dólares que esperava", disse um especialista à Sputnik.

O governo de Javier Milei concedeu as licitações para a privatização de quatro usinas hidrelétricas no sul do país, com propostas que totalizam aproximadamente US$ 685 milhões (R$ 3,6 bilhões). Esta é a primeira privatização significativa do governo libertário e também uma estratégia para lidar com a falta de reservas em dólares em um contexto de escassez de moeda estrangeira.

As usinas envolvidas são Alicurá, Piedra del Águila, El Chocón-Arroyito e Cerros Colorados, localizadas nas províncias patagônicas de Neuquén e Río Negro. As melhores ofertas vieram de operadoras locais como a Central Puerto, a MSU e o Grupo Edison, superando as multinacionais que controlavam os ativos desde a década de 1990, durante o outro grande período de privatizações da Argentina.

O governo comemorou em suas redes sociais. "Isso reafirma o interesse do setor privado em investir na Argentina quando as regras são claras", declarou o Ministro da Economia, Luis Caputo.

As chamadas Barragens de Comahue, assim denominadas devido à sua localização geográfica, foram construídas entre o final da década de 1960 e meados da década de 1990 e formam um dos mais importantes complexos hidrelétricos da América do Sul. Em 2023, a energia hidrelétrica representou quase 25% da capacidade total da Argentina.

A importância dessas instalações vai além da energia: esses reservatórios regulam importantes vazões dos rios Limay e Neuquén, abastecem grandes centros urbanos e sustentam indústrias regionais.

Além disso, devido aos seus baixos custos operacionais, geram receita estratégica para o Estado, que historicamente utiliza essa margem para moderar tarifas e financiar subsídios. A operação ocorre em meio a fortes tensões cambiais e reservas líquidas negativas, enquanto o país enfrenta vencimentos de dívidas superiores a US$ 7 bilhões (R$ 37 bilhões) no primeiro trimestre de 2026. Para o Poder Executivo, as vendas representam uma maneira rápida de levantar moeda estrangeira na ausência do financiamento externo que havia prometido garantir.

Mas a iniciativa de privatização gerou alertas institucionais. A Comissão Bicameral de Privatização do Congresso apontou que o Governo ainda não definiu quem será a autoridade reguladora para as novas concessionárias, um ponto crítico para evitar a concentração de poder e garantir o acesso equitativo às redes de energia, rodovias e ferrovias em processos futuros.

O mecanismo de avaliação também foi questionado. O Tribunal de Avaliação, que por lei deve intervir, se declarou impedido em diversas avaliações, delegando essa tarefa a um banco privado. Parlamentares da oposição descreveram isso como um risco para os ativos estatais.

Outra questão é a paralisia do Tribunal de Contas da União (TCU), com o mandato de seis de seus sete auditores expirado em abril. O TCU deveria supervisionar legal e financeiramente cada privatização, mas sua inatividade impede qualquer revisão subsequente eficaz. O Congresso indicou que poderá apresentar seu próprio relatório caso o Poder Executivo continue sem responder.

A Casa Rosada também iniciou procedimentos para privatizar outras sete barragens com concessões próximas do vencimento, além de empresas ferroviárias, rodoviárias e de energia, incluídas na chamada lei omnibus que o Poder Executivo conseguiu aprovar no Congresso em 2024. Milei insiste que a venda de ativos estatais será fundamental para atrair investimentos e estabilizar a macroeconomia em 2026.

Comemoração do governo

"Para o governo, este é um passo importante, principalmente porque obteve os dólares que esperava. Os quase 700 milhões eram uma quantia prevista", disse Paulo Farina, ex-Subsecretário de Energia Elétrica (2014-2015), à Sputnik.

Segundo o especialista, o Poder Executivo resolveu um problema crucial: vender uma "receita potencial" cujo valor futuro é incerto. Segundo o consultor, o governo optou por uma abordagem gradual, na qual as empresas privadas "só começarão a receber o pagamento do aluguel real mais tarde", com um regime de transição que mantém o preço regulamentado por anos. Isso permitiu que os licitantes "soubessem o que estavam comprando".

Farina enfatizou que a operação permaneceu nas mãos de empresas locais. No entanto, destacou um desafio para Milei: as multinacionais "não conseguem explicar às suas matrizes por que deveriam investir mais na Argentina, mesmo neste contexto", enquanto as empresas argentinas "entendem melhor a lógica do contrato" e foram mais agressivas em relação aos preços e às expectativas.

Em relação à gestão privada, Farina considerou que a decisão do governo "não é um salto no escuro", visto que o esquema mantém o status quo operacional. Além disso, afirmou que o Estado "preservará a capacidade de usar energia barata para continuar subsidiando as tarifas para quem precisa".

Custo oculto

A euforia do governo é diretamente proporcional à magnitude das críticas. Consultado pela Sputnik, Alejandro Olmos Gaona, historiador especializado em privatizações e dívida externa, afirmou que esse tipo de política constitui "uma antiga exigência de credores internacionais, que se aproveitam de contextos favoráveis ​​para adquirir ativos que custam muito caro ao Estado para construir".

O especialista destacou a experiência da história recente da Argentina em casos semelhantes:

"Em cada ciclo de privatização, vimos concessões que não terminaram bem. Foi o que aconteceu com a Aerolíneas Argentinas, que passou para mãos estrangeiras, e o próprio Estado teve que resgatá-la". Segundo o pesquisador, "a venda de uma empresa deficitária pode ser compreendida, mas não tanto a venda de uma que é estratégica e, além disso, lucrativa".

Olmos Gaona afirmou que o interesse dos credores privados não reside na eficiência energética, mas sim em garantir o pagamento da dívida: "Os credores querem ser pagos e presumem que o influxo de capital privado fornecerá os dólares necessários para cobrir juros e vencimentos. Aqui, o governo está optando por ceder um ativo estratégico para resolver uma emergência de curto prazo", destacou.


Por Sputinik Brasil