Economia

Brasil acolhe venezuelanos, que abraçam oportunidades em áreas remotas e ajudam a impulsionar o agronegócio

Governos ergueram barreiras para bloquear o êxodo de 7,7 milhões de pessoas da Venezuela, enquanto aqui eles são recebidos de braços abertos

Agência O Globo - GLOBO 18/10/2023
Brasil acolhe venezuelanos, que abraçam oportunidades em áreas remotas e ajudam a impulsionar o agronegócio

Em todo o continente americano, governos mobilizaram tropas e ergueram barreiras para bloquear o êxodo de 7,7 milhões de venezuelanos, de um país que já foi um próspero produtor de petróleo. Mas o Brasil os recebe de braços abertos.

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Os migrantes venezuelanos que atravessam a fronteira ao norte do país são recebidos por autoridades que aguardam para processar vistos, recrutadores privados que oferecem empregos e passagens aéreas pagas pelo governo.

Ao fazer isso, o país atrai migrantes para a economia, preenchendo vagas de trabalhos difíceis que os próprios brasileiros não querem e ajudando a girar a máquina de exportações do agronegócio. O governo já realocou mais de 114.000 pessoas, aproximadamente um quarto dos venezuelanos que chegaram desde 2018 — a uma taxa de mais ou menos 2.000 por mês.

A maioria se mudou para o Sul, para trabalhar em setores importantes, incluindo grandes frigoríficos. Alguns ficam em abrigos até que consigam emprego.

Para os imigrantes, os empregos oferecem uma oportunidade de se estabelecerem na sociedade. Mas o trabalho está longe do ideal: as jornadas são longas e os empregos localizados em regiões remotas do país.

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O programa suscita questões mais amplas sobre como governos devem responder a uma crise humanitária que não dá sinais de melhora. Mais de 260.000 venezuelanos fizeram a perigosa jornada pela selva rumo aos Estados Unidos durante os primeiros nove meses do ano, segundo o governo do Panamá. Isso supera os 150.000 que fizeram a viagem no ano passado.

Endry Rodríguez, um mecânico de 23 anos, chegou em maio. Ele deixou sua casa na cidade industrial de San Felix, seguindo a trajetória de muitos de seus amigos pela promessa de uma renda estável. Ele disse que estava cansado de ter que escolher entre o sonho de se tornar engenheiro mecânico ou colocar comida na mesa.

- Era comer ou estudar. Eu prefiro a primeira opção, disse Rodríguez, acrescentando que toda sua turma já tinha vindo para o Brasil. - O único que sobrou fui eu.

Então, ele e seu irmão pegaram carona na boleia de um caminhão e viajaram por dois dias até Pacaraima, principal ponto de desembarque de migrantes em Roraima. Lá, eles se candidataram à chamada interiorização, e conseguiram empregos em um frigorífico a milhares de quilômetros de distância.

Agora radicado em Montenegro, no Rio Grande do Sul, Rodríguez passa seus dias em uma unidade da JBS. A transição do conserto de carros para o empacotamento de frangos não foi fácil.

- Quando comecei, minha mão inchou. é muita pressão - disse ele. - É muita pressão.

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Programas de governo para conectar migrantes a empregos é uma resposta mais comum em economias mais desenvolvidas. A Dinamarca e a Alemanha adotaram programas com relativo sucesso para tentar integrar milhões de sírios e ucranianos refugiados. Porém, mais pessoas deixaram a Venezuela do que em ambas as nações devastadas pela guerra.

Especialistas em migração dizem que a abordagem do Brasil é única devido à extensão do esforço do governo de tentar integrar os recém-chegados venezuelanos. O programa também sobreviveu a três governos diferentes, de direita, direita linha-dura e esquerda.

- A abordagem é um investimento que pode gerar retornos - disse Pablo Acosta, economista-chefe da unidade de Proteção Social e Emprego do Banco Mundial, que estudou e aconselhou funcionários envolvidos no programa de interiorização.

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Quando um governo não intervém para ajudar os migrantes, é aí que eles “se tornam um fardo”, acrescentou Acosta.

Enquanto o Brasil expande sua força de trabalho, as lideranças dos EUA travam um debate acirrado sobre como responder ao aumento da migração de países como Venezuela, Cuba, Nicarágua e Haiti após a pandemia.

Um número recorde de pessoas não autorizadas tentou atravessar a fronteira sul dos EUA com o México sob o governo do presidente Joe Biden, que tem enfrentado críticas contundentes dos dois grandes partidos - Democrata e Republicano - enquanto tenta reformular a política federal para requerentes de asilo.

Entrevistas até por videoconferência

Empresas conseguem contratar venezuelanos diretamente em Roraima. Os migrantes podem se candidatar a vagas disponíveis em todo o país e realizar entrevistas por videoconferência. Enquanto isso, autoridades entrevistam familiares ou conhecidos já estabelecidos no Brasil que se oferecem para hospedar os recém-chegados.

Niusarete Lima, que coordena a interiorização no Ministério do Desenvolvimento Social, diz que a estratégia do governo surgiu da experiência há uma década com milhares de haitianos que começaram a chegar após o terremoto de 2010. Muitos chegaram sem documentação e depois percorreram o país em busca de trabalho.

O programa de interiorização ajuda a normalizar o processo sem sobrecarregar as cidades de destino. Quando os participantes saem da fronteira “sabem exatamente para onde vão. E nós acompanhamos eles de porta em porta”, disse ela.

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Para se qualificarem, os candidatos precisam ter a vacinação completa e a documentação de trabalho em ordem. Eles recebem informações sobre as leis trabalhistas brasileiras, serviços sociais e seus direitos.

Assim que um contrato de trabalho é assinado — ou alguém se prontifica a acolher o recém-chegado —, o governo brasileiro paga por um voo privado ou realoca os migrantes em aeronaves militares.

A unidade da JBS em Montenegro ocupa uma área de mais um quilômetro quadrado, com matadouro, plantas de processamento e centro de distribuição, assim como biblioteca, refeitório e banco no local para os mais de 2.500 funcionários. Quase um décimo da força de trabalho, ou 215 pessoas, são venezuelanos. O número deve continuar crescendo.

A produção no pequeno município gaúcho é crucial não apenas para a JBS, mas também para a economia, que este ano registou crescimento surpreendentemente forte, em grande parte graças ao agronegócio. Cerca de 412.000 frangos são abatidos todos os dias na unidade, e boa parte dessas aves é enviada para países do Oriente Médio.

Misto de euforia e exaustão

O trabalho é intenso e manual. A carga varia. Alguns fazem seis turnos semanais de sete horas e meia, e outros trabalham cinco dias por semana em turnos de oito horas e meia. Os trabalhadores começam ganhando aproximadamente 30% a mais que um salário mínimo. Alguns dizem que a pressão é excessiva para tentar atingir as metas de produção.

Mesmo assim, com a fome e a inflação de três dígitos que deixaram para trás, os recém-chegados venezuelanos descrevem suas novas vidas em um misto de euforia e exaustão.

- Eu estava muito magrelo - disse Richard Díaz, de 38 anos, estendendo o dedo indicador ao contar que estava 50 quilos mais magro quando chegou em 2021.