Cultura Pop
Neguinho da Beija-Flor vira documentário e conta: 'Morei num chiqueiro. Diziam que eu ia aparecer no jornal como chefe do tráfico'
Na semana da Consciência Negra, cantor comemora série sobre sua vida no Globoplay: 'Venci o preconceito!'
Você pode nunca ter ouvido falar de Luiz Antônio Feliciano Marcondes, mas certamente conhece . Ele adotou a alcunha ao se tornar intérprete da sua escola de samba do coração, posto em que se manteve durante 50 anos. Agora, longe dos microfones da agremiação desde que levou o 15º campeonato da Azul e Branco no último carnaval, o cantor, de 76, vem tentando se reinventar. Mas quem foi rei nunca perde a majestade. Do passado difícil em Nova Iguaçu — onde morou num chiqueiro e viveu 19 anos sem energia elétrica — aos momentos de glória na Sapucaí, a trajetória do artista será retratada no documentário “Neguinho da Beija-Flor — Soberano da Avenida”, produção original Globoplay.
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Em quatro episódios, a série será disponibilizada na próxima quinta-feira (20), Dia da Consciência Negra. A data não poderia ser mais apropriada, considerando que o cantor carrega em seu nome artístico a própria história de luta por igualdade. Para este ensaio fotográfico, Neguinho saúda seus ancestrais ao se vestir como um rei africano num local que é símbolo da resistência negra: o Armazém Docas André Rebouças, espaço construído pelo primeiro engenheiro negro no Brasil, em frente ao Cais do Valongo, na região portuária do Rio de Janeiro, onde os africanos desembarcavam e eram escravizados. Seja com a coroa na cabeça ou com o microfone na mão, Luiz Antônio é soberano. Olha o Neguinho da Beija-Flor aí, gente!
Como reagiu ao saber que sua história seria contada num documentário?
Acho que nem mereço ter a minha história contada. Não acho tão importante assim, mas o José Júnior (criador da série) me disse: “Ninguém tem 50 anos numa mesma função na mesma escola, sem faltar a um desfile mesmo nos seus piores momentos. Sem falar na história de você só ter tido luz elétrica após os 19 anos. Você morou num chiqueiro...”. Tem personalidades negras com histórias muito mais bacanas que a minha, mas ele me convenceu que a minha também é interessantíssima (risos).
O que o público pode esperar da série?
Confesso que fiquei emocionado quando vi um trecho que me mandaram, imagina quando chegarem todas as partes. Eu vendo a minha história... Vou ter que ter muita coragem para assistir. Tem depoimentos de pessoas que foram criadas comigo, que testemunharam a minha trajetória... E de pessoas que zombavam e não acreditavam em mim quando eu falava que ficaria conhecido. Diziam que eu ia ficar numa roça do interior de Nova Iguaçu.
Como foi morar num chiqueiro?
Quando dei baixa da Aeronáutica, tive um desentendimento com meu pai e saí da casa dele. Tinha um terreiro de candomblé pequeno com um espaço onde a mãe de santo criava porco. Como eu já frequentava esse lugar de vez em quando, pedi para ficar num quartinho, mas estavam todos alugados. Ela falou que tinha o chiqueiro com o porco que ela ia matar no domingo. Às 7h da manhã de segunda-feira, eu já estava lá. Morei por dois anos nesse local. Inclusive, o samba-enredo do primeiro campeonato da Beija-Flor, fiz no chiqueiro.
Você ainda frequenta o candomblé?
Na adolescência, ia para o terreiro para comer canjica. Às vezes, não tinha janta, aí eu e meu irmão batíamos na porta. Fui criado dentro do terreiro de macumba. Era duro, não tinha lugar pra ir, ia pra macumba. Atualmente, a gente bate cabeça (saudação aos orixás) de vez em quando. Não se pode perder a fé, né?
Quais foram os momentos mais marcantes de sua trajetória?
Um deles foi ver a Beija-Flor ser campeã do carnaval em 1976. Naquela época, as quatro grandes agremiações eram Mangueira, Portela, Salgueiro e Império Serrano. Aí veio uma escola considerada de médio porte ser campeã do carnaval com o meu samba e com a minha interpretação. Outro episódio marcante foi em 2009, quando tive câncer. Eu achava que aquele seria o meu último carnaval. Resolvi casar na Avenida pensando que partiria. Graças a Deus, não fui. Quase 17 anos depois, tô aqui.
Como a Elaine, sua mulher, o ajudou?
Quando Elaine entrou na minha vida, eu vinha passando um momento dificílimo, tanto de doença como financeiro. Ela acertou tudo. Ela que descobriu meu câncer. Se não fosse Elaine, hoje eu não estaria aqui. Quando os sintomas começaram, eu estava evacuando sangue. Ela me levou na marra para fazer os exames. Todo homem tem medo de médico. Mulher é corajosa.
Como está sua saúde hoje?
A saúde tá boa. Hoje (7 de novembro, quando foram feitas as fotos), tô meio baleadinho porque eu inventei de tomar aquela injeção que emagrece e tô todo arrebentado. O efeito colateral bateu forte. Estou tomando para tirar esse pneuzinho (Neguinho toca na barriga). Eu sou desses que vê defeito onde não tem.
O doc será lançado no Dia da Consciência Negra. Qual a importância da data?
A gente ainda tem que lutar muito contra o racismo. O Brasil é um país feito de preconceito. Muito se fala no holocausto (quando nazistas mataram milhões de judeus na Segunda Guerra), mas a história do negro no Brasil é comparável ou pior. Hoje tenho a oportunidade de frequentar lugares que o negro normalmente não frequenta. Basta fazer o teste do pescoço pra ver que sou uma exceção. O teste do pescoço é quando você está num restaurante mais caro e dá uma virada com a cabeça para um lado e para o outro e conta quantos negros estão ali. As pessoas costumam dizer que o 13 de maio foi uma data memorável, mas se esquecem de que a pior data foi o 14 de maio, porque nós fomos deixados sem casa, sem comida e sem trabalho. Hoje nós temos aí desembargadores, advogados... Acho que nós já conquistamos alguma coisa, mas vai demorar muito para chegar num patamar de igualdade do sinhozinho.
Já sofreu racismo?
O negro, para chegar à igualdade, tem que ser duas vezes mais. Ele pode ter até condições de frequentar lugares caros, mas não frequenta porque sabe que vai ser discriminado. Talvez eu sinta menos porque sou conhecido. A minha situação financeira melhorou, mas continuo negro. Quando faço viagem internacional na primeira classe, boto óculos escuros e observo. Sempre vejo alguém cochichando: “O que esse cara está fazendo na primeira classe com passagem de R$ 19 mil?”. Em restaurante, as pessoas ficam incomodadas com minha presença.
Quando Luiz virou Neguinho?
Deixei de ser Luiz para virar Neguinho da Vala quando eu tinha mais ou menos 7 anos. Foi uma senhora que botou esse apelido porque eu morava num brejo, ficava pegando peixinho, muçum e rã na vala. Quando começava a relampejar, a senhora falava: “Sai daí, Neguinho da Vala”. Assim ficou até os 25 anos, quando passei a fazer parte da Beija-Flor e substituí a vala pelo nome da escola.
O que há de Luiz Antônio ainda aí dentro?
Tudo, né? Quando a Beija-Flor ganhou com o meu samba, meu pai preferia que eu seguisse carreira militar e disse: “Eu não queria você nessa profissão de artista porque nem todos dão sorte. Agora com essa proporção que a tua vida vai levar através do campeonato da Beija-Flor, você vai ser o Neguinho da Beija-Flor, mas nunca se esqueça de ser Luiz Antônio”. Segundo ele, o cara quando vira artista fica com manias, deixa de frequentar lugares, esquece pessoas... Luiz Antônio para no botequim, anda sem camisa, come feijão, arroz e ovo...
Em que momentos você se acha um rei? É na Avenida ou na vida?
É na vida. Passei por muita coisa. As pessoas falavam que eu ia aparecer nos jornais, mas como o chefe do tráfico, como um bandido que assaltou um banco, e soltavam: “Um crioulo feito você vai ser artista onde?”. Venci o preconceito. Venci um câncer. Venci todas as dificuldades. Então, me considero o rei que veio do nada, sou como uma ostra que nasce do lodo.
Qual sua relação com o dinheiro?
Não sei lidar com ele. Quem administra lá em casa é Elaine. Nem sei o que ganho. Quando tem show, vou e faço, mas nem sei quanto foi.
O que mudou desde quando você se despediu da função de intérprete da Beija-Flor?
O tempo é imperdoável. O tempo parou o Pelé, parou o Zico, parou agora o Milton Nascimento. Seria muito egoísmo da minha parte ficar naquela função na Beija-Flor. Já não estava aguentando mais e deixando de dar oportunidade aos novos.
A agenda deu uma amenizada?
Os compromissos até aumentaram depois que eu saí. As pessoas agora me contratam para ver o cara que ficou 50 anos na Avenida. Mas também tô aproveitando a família, principalmente a minha caçula temporã (Luiza, de 17 anos).
Como será seu próximo carnaval?
Estou para fechar uns eventos que não posso dispensar. Se não fechar, vou estar na Avenida. Não descarto a possibilidade de sair na Beija-Flor. Vou até empurrando carro se for preciso.
Recentemente citaram seu nome como possível candidato a senador nas próximas eleições...
Deixa para a Benedita (da Silva, do PT), que eu considero minha irmã. É madrinha do meu filho, minha benfeitora. Meu negócio é compôr e cantar samba.
Além do documentário 'Neguinho da Beija-Flor - Soberano da Avenida', a Globo vai exibir programação especial na semana da Consciência Negra. Confira:
Falas Negras
Com apresentação de Luis Miranda e Luellem de Castro, o "Falas negras" deste ano traz a importância da temática racial no mês da Consciência Negra enquanto joga luz em pautas importantes sob a perspectiva do humor, utilizando o riso como ferramenta de resistência. O último "Falas" do ano será exibido no Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, quinta-feira, após "Três Graças". O programa realiza uma costura potente entre humor, ironia e crítica social.
Altas Horas
No dia 22, sábado, o "Altas Horas" apresenta uma edição dedicada ao Mês da Consciência Negra, reunindo artistas que marcaram a música e o audiovisual brasileiro para compartilharem suas trajetórias, celebrando suas conquistas, e provocando reflexões sobre representatividade. Os convidados também apresentam musicais de artistas que os inspiram. São eles: Aline Wirley, Babu Santana, Belize Pombal, Isabel Fillardis, Jessica Ellen, Karin Hils, Micheli Machado e Robson Nunes e Negra Li. A vencedora do reality ‘Estrela da Casa’, Thainá Gonçalves, também marca presença.
Filmes
No Dia da Consciência Negra, a "Sessão da Tarde" exibe "Ó Pai, Ó 2", continuação da comédia brasileira de 2007 que mostra Roque (Lázaro Ramos) se preparando para lançar seu primeiro sucesso. Além da obra, uma seleção especial com mais de 20 títulos que destacam vivências e protagonismos negros vem sendo exibida nas faixas de filmes da TV Globo desde o início de novembro, em homenagem à data, como "Resistência", "A Fera", "George Foreman: Sua História", "Desaparecida", "Barraco de Família" e "Acertando o Tom".
Voz da Consciência
O Multishow e o Bis exibem a nova temporada de "Voz da Consciência" em novembro. Apresentada por Péricles, a série mergulha nas raízes da música negra brasileira e reúne nomes como Thiaguinho, Jota.Pê, Liniker, Criolo, Dexter, entre outros. Em oito episódios, a atração valoriza a trajetória de artistas negros e periféricos, reafirmando a música como instrumento de memória, resistência e celebração da cultura negra. "Voz da Consciência" vai ao ar aos sábados, sempre às 23h45, no Multishow, e com reapresentações no Bis, às terças, às 21h.
A Voz do Carnaval
Em setembro, o Multishow estreou o reality "A Voz do Carnaval", mergulhando na emoção da disputa para eleger os novos intérpretes da Beija-Flor. O programa, apresentado por Samuel de Assis, acompanhou de perto a trajetória para encontrar a dupla que assumiu o posto de intérpretes oficiais da escola, sucedendo o lendário Neguinho da Beija-Flor. Os quatro episódios estão disponíveis para serem revistos na íntegra no Globoplay.
Campanha 'Sorrir é resistência'
Em novembro, a campanha "Sorrir é resistência" volta à programação da Globo como parte das ações do projeto Negritudes Globo para o Mês da Consciência Negra. A mensagem celebra a força da alegria como expressão de ancestralidade, união e futuro e convida o público a reconhecer o sorriso como símbolo de resistência e construção coletiva.
Neguinho usou: Acervo feijão preto @feijaaopreto Kuavi África @kuavi_africa Minha Avotinha @minhavotinha Coração da África @coracaodaafrica
Créditos: Texto e produção executiva: Thomaz Rocha Edição: Camilla Mota Fotos Márcio Farias: @marciofariasfoto Assistente de fotografia: Douglas Jacó @douglasjaco1 Styling: Jessica Kelly @jessicakelly____ Beleza: Lais Régia @laisregiaa Agradecimento: Armazém Docas André Rebouças @fundacaopalmares
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