A cidade e seus buracos
Há quem diga que o buraco é ausência — falta de asfalto, de cuidado, de vergonha. Mas não: o buraco é presença. Ele está ali, sólido na sua ociosidade, resistente às chuvas e às promessas, como um monumento ao abandono.
E cada vez que o pneu mergulha num deles, é como se a cidade gritasse: “Eu estou aqui, esquecida, mas viva!”.
Nos últimos tempos, as ruas têm se transformado num campo de provas. Quem dirige por elas deveria ganhar adicional de periculosidade e um troféu de amortecedor sobrevivente. Cada cratera conta uma história: umas datam de administrações passadas e resistem heroicamente às tentativas de maquiagem com barro e brita; outras são novatas, abertas com a elegância das obras inacabadas e do asfalto recém-cortado pela empresa que promete o progresso.
E há sempre uma empresa.
Um nome bonito, um contrato milionário, um maquinário reluzente que aparece na primeira semana — e some antes do fim da segunda. Fica o buraco, o entulho e a velha placa dizendo “Desculpe o transtorno, estamos trabalhando para você”. Só não dizem para quem estão trabalhando.
O povo, que já aprendeu a desviar mais rápido que os carros de Fórmula 1, criou um tipo de sabedoria empírica: conhece o mapa dos buracos de cor. Há ruas que exigem marcha reduzida e oração; outras, o motorista já atravessa em zigue-zague como quem dança um frevo involuntário. As motos, coitadas, pulam feito cabras do mato. E o pedestre, quando chove, vira equilibrista de lama e esperança.
Mas o buraco é mais do que uma simples falha no chão. Ele é símbolo. É metáfora do discurso político que afunda no primeiro inverno. É a cicatriz que o poder público deixa quando faz promessa de verão e esquece no outono.
Porque o buraco, no fundo, é o retrato da gestão: o que falta no solo é o que falta na alma administrativa — zelo, cuidado, presença.
Toda cidade tem seus buracos físicos e morais. Os físicos, a gente enxerga e xinga; os morais, a gente finge que não vê, mas tropeça do mesmo jeito.
Nas avenidas do poder, há crateras abertas pela soberba; nas calçadas da ética, fissuras escavadas pela impunidade. E, enquanto o povo remenda a suspensão do carro, o político remenda a narrativa — dizendo que a culpa é da chuva, do governo anterior ou da licitação que “está em andamento”.
A ironia é que, às vezes, o buraco tem mais caráter que muita autoridade: ele não disfarça o que é, não promete o que não pode cumprir, e está sempre no mesmo lugar.
Há cidades que parecem ter se tornado um grande campo minado de asfalto, um labirinto de crateras e desculpas. Mas, curiosamente, o buraco nunca chega à porta do gabinete. As ruas do poder são sempre lisas, polidas, como se o asfalto também soubesse quem manda.
E o povo segue, desviando — da cratera e da mentira —, empurrando o carro e a paciência, esperando que um dia alguém tape o buraco da cidade e, quem sabe, o da consciência.
Porque, no fim das contas, o buraco maior é o que se abre entre o discurso e a realidade.
E esse, meu caro leitor, nem brita resolve.
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