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Guerra civil? Contrato social justo
Os espantosos atos de guerra civil que, abismados, assistimos. Abisma-me mais a habilidade de antípodas ideológicos acusarem-se reciprocamente. A questão de fundo, contudo, não é enfrentada. Só quando conflitos armados se tornam espetaculosos fala-se com medo e indignação da agressão caotizante que constrange. Todavia, é medo do já sabido e indignação oportunista, porque os que quiséssemos saber saberíamos que tudo tem sido vaticínio de desfecho anunciado.
Senão, vejamos: alguém acredita em contrato social? Consideremos que haja um Contrato Social, ou seja, um Acordo Geral de Convivência dos Brasileiros, que estaria consubstanciado em lei, a Constituição. Ele é justo para todos? Contempla igualmente a totalidade da Nação? Se não, seria legítimo que, diante das excessivas vantagens de uma parte, a outra reagisse? Quem não reagiria, não é mesmo? Afinal, o mundo, se não é acordo, é conflito, é relação de poder.
Tomemos os contratualistas, os teóricos dessa condição política de viver em comum. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) inscreve-se em uma tradição intelectual que tem alguma coisa a dizer sobre os desajustes da vida civil brasileira, advindos da nossa sabida condição de desigualdade, a maior do mundo. Suas orientações, não obstante de séculos atrás, entre nós permanecem necessárias. Destaco e edito do Contrato Social, Editorial Presença:
Privilégios não se justificam. “Se o homem não tem qualquer autoridade natural sobre os seus semelhantes, se a força não origina direito algum, restam-nos as convenções”, que são a base do que é legítimo. Em condições sociais razoáveis, cuidadas por normas razoáveis, vive-se em paz. “São as circunstâncias e não os homens que determinam as guerras.”
São indefensáveis contratos desproporcionais. “Quer de um homem para outro homem, quer de um homem para um povo, sempre esta argumentação será insensata: ‘Estabeleço contigo um acordo, inteiramente em meu benefício e totalmente em teu prejuízo, que manterei enquanto quiser e que tu terás de aceitar enquanto eu assim o entender.’ Sempre que acontecer a imposição dos interesses de uns sobre os outros, haverá um agregado, mas nunca uma associação em que exista bem público e corpo político.”
“O pacto social em vez de destruir a igualdade natural, concede-lhe, pelo contrário, uma igualdade moral e legítima onde a natureza tinha criado uma desigualdade física, e os homens que, na força e no gênio são desiguais, tornam-se iguais pela convenção e pelo direito. Se o Estado ou a cidade é uma entidade moral, cuja vida consiste na união dos seus membros, e se o mais importante dos seus cuidados é o da sua própria conservação, tem de existir uma força universal e compulsiva que mova e disponha cada parte de maneira mais conveniente para o todo.”
Seria insustentável tomar como decisão expressa pela vontade geral o que não passaria de uma conclusão de uma das partes, a qual só poderia ser encarada pela outra como uma vontade estranha, particular, sentida como injusta, porque, numa instituição, “cada um tem necessariamente de se submeter às mesmas condições que impõe aos outros”. O pacto social estabelece entre a cidadania uma tal igualdade que “todos ficam obrigados às mesmas condições e todos devem gozar dos mesmos direitos”.
“A finalidade de todo o sistema de legislação se resume a dois objetivos principais: a liberdade e a igualdade: a liberdade porque toda a particular dependência é força retirada ao corpo do Estado; igualdade, porque a liberdade não pode existir sem ela. Dizem que esta igualdade não se a pode viver na prática. É precisamente porque a força das coisas tende para destruir a igualdade que a legislação deve procurar mantê-la sempre.”
“Qual a finalidade da associação política? É a conservação e a prosperidade dos seus membros.” Mas se logo “alguém diz: Que me importa? ao referir-se às questões do Estado, o Estado está perdido. Os que só conhecem Estados mal constituídos desde a sua origem enganam-se pensando ser possível manter semelhante equilíbrio”.
Bem, Rousseau pode ser havido como “comunista”, então, tomemos o que, antes dele, disse o inspirador do liberalismo, John Locke (1632-1704): Para viver sob um pacto social, o homem não pode aceitar privilégios de subgrupos, “porque não é qualquer pacto que faz cessar o estado de natureza entre os homens, mas apenas o de concordar mutuamente e em conjunto, em formar uma comunidade, fundando um corpo político” de iguais.
A coerência de seu texto subordina a vontade egoísta à possibilidade de civilização: ao optar pela vida em comum, o indivíduo abandona o poder de fazer tudo quanto julgue conveniente, “para que seja regulado por leis feitas pela sociedade, até o ponto em que o exija a preservação dele próprio e do resto da sociedade” (Os Pensadores, Abril Cultural).
Muitos dirão que o liberalismo não basta para conter a turba embrutecida. Então, podemos considerar quem primeiro, com fama de autoritário, tratou do tema, Thomas Hobbes (1588-1679), o teórico do Leviatã: “A diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar”.
Ora, este é o sentido do contrato social: abandonar a vida bruta para viver em harmonia, segurança e condições de igualdade: “Que ao iniciarem-se as condições de paz ninguém pretenda reservar para si qualquer direito que não aceite seja também reservado para qualquer dos outros”. O Estado é uma invenção para possibilitar consensualmente uma existência segura. “Por segurança não entendemos aqui uma simples preservação, mas também todas as outras comodidades da vida”.
Os pensadores da vida em comum têm essa recomendação aos que, no Estado brasileiro, gozam de privilégios: É já passada a hora de ceder um tanto, para haver paz. É que, por bem ou por mal, todos querem – com o direito de querer – a sua porção das tantas coisas boas que este país oferece. Os excluídos podem buscar legitimamente o que Hobbes nomeia estado de guerra: “Numa tal situação, não há sociedade. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta” (Os Pensadores, Abril Cultural). Estamos advertidos? Talvez não.
Tomemos as condições da ética capitalista. O teórico da “mão livre do mercado”, Adam Smith (1723-1790): “Dever-se-á considerar esta melhoria da situação das camadas mais baixas da sociedade como uma vantagem ou como um inconveniente para a sociedade? A resposta é tão óbvia, que salta à vista. O que faz melhorar a situação da maioria nunca pode ser considerado como um inconveniente para o todo. Nenhuma sociedade pode ser florescente e feliz, se a grande maioria de seus membros forem pobres e miseráveis. Manda a justiça que aqueles que alimentam, vestem e dão alojamento ao corpo inteiro da nação, tenham uma participação tal na produção de seu próprio trabalho, que eles mesmos possam ter mais do que alimentação, roupa e moradia apenas sofrível” (Os Economistas, Abril Cultural).
O mau equilíbrio brasileiro é antigo. A diferença é que, nos tempos idos, a plebe era plebe e pronto. Hoje, os plebeus saem violentos das franjas da cidade. Ou, armados “até os dentes”, recebem o Estado que os excluiu e persegue. E isso não é uma questão de esquerda ou direita, é condição estrutural do Brasil. A maior letalidade da polícia do Rio de Janeiro ocorreu quando Benedita da Silva, petista, governou e estado por nove meses: 1200 mortes. O maior e mais continuado índice de mortes por policiais acontece, hoje, na Bahia, governada por petistas. A polícia, com ou sem motivos legais, sob seu comando, realiza mais cadáveres.
Talvez a direita haja matado menos por falta de oportunidade, porque o discurso de seus representantes mais broncos, hostis e assanhados é de “bandido bom é bandido morto”, ao tempo em que seus indignados “tradicionais” se perguntam de onde, afinal, saiu “essa gente”, esquecendo-se de quem os serviu pelo correr da História do Brasil.
Nos últimos vinte anos são 1000000 milhão de mortos, 135 por dia. É o que temos: CANI, Conflito Armado Não Internacional, o nome técnico da guerra civil que estamos vivendo. Duvido que sem objetiva inclusão social, leia-se nivelamento material de renda, as coisas se acalmem. Não adianta a esquerda matar e exculpar-se responsabilizando o neocapitalismo; não importa a direita prometer repressão em discursos eleitorais. Medidas governamentais compensatórias temporárias também não servem.
Única saída: atentarmo-nos ao destino comum do País. Com ou sem a vontade de cada um, ele nos envolve a todos. Os que estamos em vantagem, sobretudo os que têm excesso de vantagens, hão de concordar em distribuir renda. Ou fatos igualitários, ou nada, penso eu. Creio que os excluídos tão bem armados pensam igual, e, pelos seus bandidos meios, já buscam o que entendem ser seu. Sugiro que entreguemos alguma coisa.
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