Política

Com força na periferia, direita conquista maioria nos conselhos tutelares em SP; esquerda vai bem nos bairros centrais

Para especialistas, eleição de conselheiros ligados a grupos menos garantistas e mais moralistas pode representar risco para os direitos de crianças e adolescentes

Agência O Globo - GLOBO 06/10/2023
Com força na periferia, direita conquista maioria nos conselhos tutelares em SP; esquerda vai bem nos bairros centrais
Foto: Antonio Augusto/Ascom/TSE

A eleição para os conselhos tutelares, realizada no último domingo, mobilizou mais de 200 mil eleitores na cidade de São Paulo, 35% a mais que na votação anterior, realizada em 2019. A mobilização de setores da esquerda e da direita em torno do tema reeditou a polarização vista no último pleito presidencial, antecipando um embate que deve se repetir também na eleição para a prefeitura em 2024.

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Os resultados divulgados até o momento ainda são preliminares, sendo que a lista definitiva será publicada na próxima quarta-feira (11). Os dados disponíveis até agora indicam que só 72 dos 260 conselheiros da cidade foram reeleitos, o que indica uma taxa de renovação de 72% nos órgãos responsáveis por zelar pelos direitos de crianças e adolescentes nos 52 distritos da cidade.

O GLOBO analisou os resultados de 205 candidaturas impulsionadas na capital paulista por grupos de esquerda e de direita pelas redes sociais. Dentre 102 sugestões contidas numa lista que circulou em grupos do WhatsApp com indicações de "apenas candidatos progressistas", 49 foram eleitos em São Paulo. Nos distritos da Sé, Bela Vista, Butantã, Vila Mariana, Pinheiros e Lapa, todos os cinco eleitos integram essa lista.

Já dentre os 103 nomes indicados em um documento enviado pelo Telegram, X (ex-Twitter) e Facebook com candidatos tidos como "conservadores" e "cristãos", 41 foram eleitos. A força desses foi maior nas periferias: conquistaram a totalidade dos assentos na Penha, Cidade Líder e Lajeado (Zona Leste); a maioria em Aricanduva, Pirituba e Casa Verde (Zona Norte); e também no Rio Pequeno (Zona Oeste).

Para o advogado Ariel de Castro Alves, ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o poder público não divulgou amplamente a realização da eleição e descumpriu o que determina a Constituição Federal, que prevê prioridade absoluta às crianças e adolescentes. Desse modo, grupos organizados como igrejas e partidos políticos tomaram a frente da discussão e conseguiram ditar os rumos dos conselhos tutelares na cidade.

— Vários setores, principalmente aqueles que perderam o processo eleitoral nacional no ano passado, estiveram mais organizados nesta eleição, inclusive por meio de igrejas neopentecostais, para uma espécie de revanche. O objetivo é a defesa de pautas que eles priorizam, como a posição contra a descrimininalização do aborto, o combate à ideologia de gênero, a defesa do homeschooling, da escola sem partido. O fato de candidatos que tinham uma estrutura por trás terem sido eleitos pode comprometer a autonomia e independência dos conselhos tutelares — analisa.

O Instituto de Cooperação Pública e Social (Icoops) fez análise semelhante à do GLOBO, também a partir de listas compartilhadas pelo WhatsApp com candidaturas “progressistas” e “conservadoras”. Segundo essa análise, a maioria dos assentos (62%) foi conquistada por conservadores, parte dos quais ligada à igreja evangélica. O campo da esquerda arrematou 35% das vagas, enquanto 3% foram classificados como “independentes”.

O sociólogo Paulo César Oliveira, ex-conselheiro tutelar e presidente do Icoops, diz que a composição dos conselhos em São Paulo já havia se tornado mais conservadora na eleição anterior, mas esse processo se ampliou agora. Ele diz que ideologias que prezam menos pelo garantismo e mais por valores morais podem ser um risco para crianças e adolescentes transexuais, ou para jovens que integram um núcleo familiar não tradicional, como filhos de casais homoafetivos ou de mães solteiras. Questões como gravidez na adolescência ou até mesmo a ligação com religiões como o candomblé podem ser analisadas de modo diferente por conselheiros ligados a igrejas evangélicas, por exemplo.

O fato de candidatos conservadores terem conquistado mais assentos na periferia, segundo Paulo César, representa um risco ainda maior, já que famílias de regiões menos favorecidas economicamente tendem a demandar mais dos conselhos tutelares locais.

— O conselho foi inserido em um embate político polarizado, mas no meio disso temos que lembrar que há crianças e adolescentes. Essa polarização borbulhante coloca em risco o princípio garantista, traz um indicativo de retrocesso. Desde já o poder público precisa achar um caminho do meio, para que possamos conversar com esses conselheiros e assegurar que eles não apliquem a Bíblia em suas decisões, mas sim a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente — defende o sociólogo.