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Entenda o que é genocídio, crime que Corte de Haia determina que Israel evite cometer em Gaza

Decisão de Corte Internacional de Justiça é a primeira em âmbito de petição apresentada pela África do Sul que acusa Israel de tentar exterminar população palestina de território

Agência O Globo - EXTRA 26/01/2024
Entenda o que é genocídio, crime que Corte de Haia determina que Israel evite cometer em Gaza
Entenda o que é genocídio, crime que Corte de Haia determina que Israel evite cometer em Gaza - Foto: reprodução

Em sua primeira decisão no processo de genocídio movido pela África do Sul contra Israel, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) evitou determinar que o governo israelense cesse sua campanha militar na Faixa de Gaza, só ordenando que adote "todas as medidas em seu poder" para não cometer "atos de genocídio" contra palestinos e deixe entrar mais ajuda no território. As medidas cautelares foram emitidas duas semanas depois de as autoridades israelenses e sul-africanas apresentarem seus argumentos perante o tribunal.

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Como representação judicial máxima das Nações Unidas, as ordens da CIJ são vinculantes, ou seja, devem ser cumpridas pelos países membros. No entanto, o único órgão da instituição que poderia impor quaiquer de suas decisões por meio do uso da força é o Conselho de Segurança, onde Israel conta com apoio dos EUA — um dos cinco membros permanentes (além de China, Rússia, Reino Unido e França) com poder de veto.

— É um peso muito mais político [da CIJ] do que prático — avalia Erika Kubik, professora de Direito Internacional no Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (Inest-UFF). — A gente fica refém do Conselho de Segurança e dessa arquitetura que imobiliza qualquer possibilidade de ação.

No caso da guerra na Ucrânia, por exemplo, a CIJ chegou a ordenar o cessar-fogo menos de um mês depois da invasão russa, mas a guerra completará dois anos em fevereiro.

A decisão desta sexta-feira é a primeira de um processo que deve se arrastar por anos. No petição por genocídio, a CIJ precisa investigar se há responsabilidade de Israel, o que é especialmente difícil de provar devido às especificidades do crime, em que a intenção de dizimar um grupo precisa ser evidente.

— Aquilo que no começo do conflito a gente já dizia que se tratava de crimes de guerra, agora o que se alega é que esses crimes de guerra têm um objetivo genocida — explicou ao GLOBO Sylvia Steiner, ex-juíza do Tribunal Penal Internacional (TPI), também em Haia, e única brasileira a já ter integrado a corte. — Existem desafios de diferente natureza para provar o genocídio em uma corte internacional. No TPI, o mais difícil é determinar a responsabilidade penal individual, como o dolo e o nexo de causalidade entre as ações e o resultado. Por outro lado, determinar a responsabilidade do Estado, como a África do Sul está fazendo, é mais fácil pelo número de provas que podem ser coletadas.

Kubik afirma que será muito difícil obter uma condenação de Israel na CIJ. Até hoje, nenhum Estado foi responsabilizado por genocídio na Corte de Haia, apenas em tribunais excepcionais criados a partir de uma resolução do Conselho de Segurança, como a ação que julgou o genocídio em Ruanda, em 1996 — a primeira condenação da História pelo crime, quase 50 anos depois do estabelecimento da Convenção para o Genocídio.

Em média, 250 pessoas são mortas por dia em Gaza, tornando o conflito o mais letal do século, segundo relatório da instituição britânica Oxfam deste mês. Segundo o ranking da organização, a média de baixas por dia no enclave palestino supera a dos principais conflitos armados da História recente: Síria (96 mortos por dia), Sudão (51), Iraque (50), Ucrânia (43), Afeganistão (23) e Iêmen (15).

Não há um número mínimo de vítimas nem um período mínimo de ocorrência para que a prática de genocídio seja reconhecida. Enquanto o genocídio em Ruanda, em 1994, matou mais de 1 milhão de pessoas ao longo de um ano, o Massacre de Srebrenica, na Bósnia, durou dois dias, nos quais mais de 8 mil pessoas foram assassinadas.

Entenda: o que é genocídio?

Já nos primeiros dias do conflito entre Israel e Hamas, a palavra genocídio já era usada por ambos os lados. O que antes não passava de uma acusação subjetiva ganhou novos contornos após a África do Sul denunciar a suposta intenção genocida do Estado judeu à CIJ. Mas o que é de fato genocídio e por que é um desafio tão grande prová-lo?

Segundo a Convenção, genocídio é "qualquer um dos seguintes atos cometidos contra membros de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso com a intenção de destruir o grupo, no todo ou em parte: (a) matar membros do grupo; (b) causar lesões corporais ou mentais graves; (c) infligir deliberadamente condições de vida que provoquem sua destruição; (d) impor medidas destinadas a impedir nascimentos dentro do grupo; e/ou (e) transferir à força crianças do grupo para outro".

O termo "genocídio" foi usado pela primeira vez em 1944 pelo advogado polonês Raphael Lemkin, em referência ao Holocausto promovido pela Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Contudo, seu reconhecimento como crime pelo direito internacional só surgiu quatro anos depois, com a adoção da Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio pela ONU, em 1948, da qual tanto Israel quanto a África do Sul são signatárias.

Na acusação referente à crise em Gaza, a nação sul-africana chegou a reconhecer o "peso particular da responsabilidade" de denunciar o Estado judeu pela prática de um crime sofrido por sua população no passado. No entanto, uma das particularidades da Convenção é justamente o dever que todos os países signatários têm de impedir ou fazer cessar um genocídio em curso, explica Steiner, o que justifica a ação ter sido movida pela África do Sul, que não está envolvida no conflito.

— No direito internacional, todos os Estados têm a obrigação de prevenir ou enfrentar o genocídio, é um dos poucos crimes em que há jurisdição universal — afirma Steiner.

Apesar do termo ter sido cunhado em referência ao Holocausto, o massacre do povo judeu não foi julgado como genocídio, mas sim como crime contra a Humanidade, definido pelo Estatuto de Roma como "ato cometido como parte de um ataque generalizado ou sistemático dirigido contra qualquer população civil". Na prática, muitas tipificações previstas no Direito Internacional Humanitário (DIH) tratam de ações similares, como assassinato de civis e deslocamento forçado de uma população, e podem inclusive se somar, analisa Kubik. A diferença reside nos detalhes, que no caso do genocídio é a intenção de exterminar um grupo determinado.

A África do Sul busca a responsabilização de Israel demonstrando a suposta "intenção genocida" a partir de evidências como declarações de autoridades israelenses. Uma das falas citadas é do ministro da Defesa da Israel, Yoav Gallant, referindo-se ao inimigo como "humanos animalescos" ao ordenar o cerco total a Gaza, privando a população civil de água, comida, eletricidade e combustível por semanas.

O premier Benjamin Netanyahu também teve uma fala citada na petição da África do Sul. Nela, ele exorta a população a lembrar "o que Amaleque fez", em referência à história dos amalequitas, do Antigo Testamento. O povo inimigo de Israel teria atraído a ira de Deus por sua maldade ao atacar o povo judeu ao longo dos anos. Segundo a escritura, Deus ordenou ao rei Saul a morte de todos em Amaleque.

"Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém, matarás desde o homem até a mulher, desde os meninos até os de peito, desde os bois até as ovelhas, e desde os camelos até os jumentos", diz o texto bíblico, ao qual Netanyahu fez referência.

Enquanto no Tribunal Penal Internacional (TPI) uma condenação por genocídio poderia resultar em um mandato de prisão contra os seus autores, uma eventual punição na CIJ é mais voltada para a reparação das vítimas e a preservação da memória para que a tragédia não se repita.

— Entre as possíveis sanções estão a indenização das vítimas, o reconhecimento de que se agiu dessa maneira e a tomada de uma série de medidas para que essa prática não volte a acontecer, como o estabelecimento de políticas internas e apresentações de relatórios mostrando como essas iniciativas estão sendo conduzidas — afirma Steiner.