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O brasileiro é criativo? Resultados insatisfatórios de estudantes em teste questionam méritos do 'país da gambiarra'
Professor lembra que o natural é seguir o caminho com menos gasto de energia e que a criatividade está mais ligada ao trabalho duro do que se costuma imaginar
O brasileiro gosta de repetir que é um povo criativo, mas será que é mesmo? Nosso desempenho na “prova de criatividade” da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) deixou a desejar.
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Pela primeira vez, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês) aferiu a criatividade de alunos de 15 e 16 anos, entendida como “a competência de se envolver produtivamente na geração, avaliação e melhoria de ideias que podem resultar em soluções originais e eficazes, avanços no conhecimento e expressões impactantes de imaginação”. Os resultados saíram em junho e, de zero a 60, o Brasil fez 23 pontos (a média foi de 33) e ficou atrás de países como Catar, Chile, México e Cazaquistão. Mais da metade dos estudantes brasileiros (54,3%) não atingiu o nível de criatividade considerado básico.
Gambiarras
A proverbial criatividade brasileira não passa de um mito? Não é bem assim. Professor da PUC-RS, Cristiano Max diz que tudo depende do que entendemos por criatividade e do método de avaliação. Ele adota a definição do teórico Robert Sternberg, que chama de criatividade uma confluência de recursos com vistas à resolução de problemas ou expressão de autoria, que depende de cognição, conhecimento, estilo de pensamento, personalidade, motivação e ambiente. Ou seja, criatividade teria a ver com contexto, o que nem sempre os testes internacionais levam em conta.
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— A criatividade brasileira é adequada à nossa realidade, à economia da escassez que marca grande parte da população. Não à toa, nós temos uma instituição chamada gambiarra — explica Max, autor do artigo “Criatividade à brasileira: o jeitinho para driblar crises” (com Giovanni Tavares Pereira e Marinês Andrea Kunz) e também ensina criatividade. — Mas a escassez também limita: ela é o gatilho propulsor que cria a gambiarra, mas também faz o provisório virar permanente.
Autor de “Criando um segundo cérebro” (Sextante), o americano Tiago Forte brinca que coloca seu “chapéu brasileiro” para “ativar o jogo de cintura” sempre que precisa de um pouco de criatividade para lidar com a burocracia (a mãe dele nasceu aqui). Forte define criatividade como a capacidade de conceber soluções, que se tornou ainda mais relevante no mundo digital.
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— Tenho dois filhos e, observando o entusiasmo e as brincadeiras deles, vejo que todos temos um potencial criativo, mas essa matéria-prima precisa ser desenvolvida, refinada, o que demanda esforço, ambição e vontade. E também um novo jeito, menos passivo, de se relacionar com a tecnologia — afirma o autor. — Pesquisas mostram que os brasileiros estão entre os povos mais tecnológicos do mundo, mas, para que esse uso impulsione uma sociedade mais criativa, não devemos consumir as inovações passivamente.
Patentes
CEO do Rio2C, o maior evento de criatividade e inovação da América Latina, Rafael Lazarini identifica no brasileiro certa “criatividade aplicada”, cujo principal símbolo é... a gambiarra! No entanto, diz ele, falta ao país a “estrutura” necessária para que nossa criatividade não se limite a uns poucos exemplos excepcionais, mas tenha impactos econômicos e sociais mais relevantes.
— É como no esporte: há gigantes como Rebeca Andrade, mas nem todo mundo é como ela. Temos uma criatividade inata e expoentes criativos, mas isso não se reflete, por exemplo, no número de registro de patentes. Em 2023, houve 28 mil pedidos de patente no Brasil. Nos Estados Unidos, são mais de 600 mil por ano — compara Lazarini. — Como o ambiente não é propício, as pessoas criativas só conseguem se destacar com muita resiliência e dedicação fora da curva.
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Às vezes descrita como um dom com o qual alguns poucos sortudos são premiados, e que dá frutos sem esforço e é expressão de individualidade, a criatividade é indissociável de trabalho duro. Professor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Charles Watson afirma que criatividade é “um compromisso de longo prazo com uma atividade ou campo de conhecimento e a produção de resultados significativos que necessariamente vão além da esfera meramente pessoal”.
— Esse compromisso implica a luta com materiais, conceitos ou palavras que são necessários para trazer sua ideia a algum tipo de fruição, mas que geralmente resistem às melhores intenções. Em raríssimos casos, isso pode envolver a inauguração de um novo campo de conhecimento, como no caso da teoria da evolução, de Darwin, e da psicanálise, de Freud — explica.
A “criatividade significativa”, diz ele, exige tempo “para internalizar grandes quantidades de informação” e “formular perguntas”.
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— A criatividade não é tão natural ou fácil quanto a autoajuda nos faz acreditar. Para nossos cérebros, natural é seguir o caminho de menor resistência, usar uma quantidade mínima de energia esperando o máximo de retorno. Por que gastar mais energia procurando uma solução nova quando uma antiga e familiar funciona tão bem? Quando nos é dada a opção, tendemos a escolher as vias neurais mais percorridas, as opções já testadas — resume Watson. — Criatividade verdadeira envolve construção de pontes entre o familiar e o improvável.
Criatividade e tecnologia costumam caminhar juntas. Não à toa, criatividade e inovação são sinônimos. Por outro lado, a criatividade é entendida como uma característica restrita aos humanos. Mas é mesmo? Até quando? Professor de Criatividade e Inteligência na Casa do Saber, Roberto Vilhena alerta: precisamos aprender uma coisa ou outra com as máquinas a fim de assegurar que a IA não substitua até as profissões ditas criativas.
Vilhena, que também é diretor de criação da agência de publicidade FCB Health, em Nova York, explica que a IA se desenvolveu com base em pesquisas sobre a estrutura lógica do pensamento humano, mapeada desde Aristóteles. Devemos, portanto, nos debruçar sobre as teorias do conhecimento para descobrir que operações intelectuais as máquinas são incapazes de executar e o tipo de pensamento que os algoritmos não podem prever. Como as piadas e as “metáforas de alta performance”.
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— A IA pode até fazer diagnóstico com base em sintomas, mas há lacunas que ela não consegue ocupar. Nos anos 1990, uma propaganda do Nike Air mostrava Michael Jordan pulando e dizia: Michael Jordan 1 versus Isaac Newton 0, insinuando que aquele tênis desafiava a Lei da Gravidade. IA não faz isso. Nem diz que “entre o riso e a lágrima só existe o nariz”, como Millôr Fernandes — afirma Vilhena, que recomenda a formação de repertório cultural diverso para atiçar a criatividade. — É igual a nutrição: prato bom é prato colorido. Mesmo que você estude Direito, vá ver quem é Mário Quintana. Em pouco tempo, o seu cérebro vai estar estimulado e você vai começar a produzir metáforas.
Para a escritora e professora de escrita criativa Noemi Jaffe, podemos até não perceber, mas esse repertório de onde brota a criatividade já está dentro de nós. No livro “Escrita em movimento: sete princípios do fazer literário”, ela propõe uma definição fresca de um dos sinônimos mais lembrados de criatividade: “originalidade”. Embora associada ao novo, originalidade vem de... origem. Portanto, o desenvolvimento da criatividade depende da escavação do próprio passado, do reconhecimento de nossas influências e daquilo que, sem nenhuma vergonha, copiamos dos outros.
— Até Homero sofreu influências — insiste Jaffe. — Já temos o material necessário para sermos originais. Basta recorrer às nossas leituras aleatórias, aos discos e filmes que amamos, à nossa família, ao nosso sotaque.
‘Ansiosa e narcísica’
A escritora afirma que há um componente ético nessa junção de originalidade e passado: ela nos livra da “pressão do novo pelo novo”, de uma criatividade “ansiosa, narcísica e consumista
— A novidade sem passado é vazia — diz ela, que acredita que ensinar criatividade nada mais é do que orientar a ativação desse repertório original que, sem dúvida, todo brasileiro tem.
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