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'Tecnicamente, Cuca é inocente'; especialistas explicam a anulação do processo da década de 1980

Treinador não tem condenação porque o caso está extinto; não houve novo julgamento porque o crime prescreveu

Agência O Globo - GLOBO 04/01/2024
'Tecnicamente, Cuca é inocente'; especialistas explicam a anulação do processo da década de 1980

O Tribunal Regional de Berna-Mittelland, na Suíça, anulou a sentença que havia condenado Alexi Stival, então jogador e hoje técnico de futebol Cuca, por ter feito sexo com uma menor de idade sob coerção — equivalente ao crime de estupro pela lei local atual — durante uma excursão do Grêmio ao país europeu em 1987. A decisão da anulação foi divulgada nesta quarta-feira pela defesa. Não há possibilidade de novo recurso. A decisão da juíza Bettina Bochsler, no entanto, não entra no mérito da acusação.

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À época, Cuca e outros três jogadores do Grêmio foram condenados — ele e outros dois, a 15 meses de cadeia e multa, e um quarto, a 3 meses e multa.

Acácio Miranda da Silva Filho, doutor em Direito Constitucional pelo IDP/DF, mestre em Direito Penal Internacional pela Universidade de Granada/Espanha, explica que em qualquer processo há o aspecto procedimental, que são as etapas do processo e que necessariamente todas precisam ser cumpridas, e os aspectos relacionados ao mérito, que é julgamento dos fatos. E que apesar do tratamento tecnicamente distinto, na prática, eles "andam de mãos dadas".

— E quando soltam as mãos, há um vício naquele processo — afirma o especialista.— Para alguém ser julgado, este precisa ser intimado, estar ciente. Muito provavelmente os caminhos para que ele fosse intimado, não foram cumpridos. A Justiça suíça, à época, não teve essa preocupação. Trataram o caso com certo desdém e por isso a nulidade

Acácio acrescenta que não existe julgamento penal à revelia nem na Suíça, nem no Brasil.

— Em outras esferas, como a civil e trabalhista, sim. Mas na penal, não. Existem casos em que as pessoas são absolvidas pela observância de erro no processo e existem casos em que nitidamente foi cometido crime, mas por conta das regras processuais, acabam não condenadas. É ruim mas em prol da grande maioria, que é acusada injustamente, é importante que se preserve as regras.

Acácio diz ainda que a anulação ocorreu no aspecto processual e não quanto ao mérito, que já está prescrito. E, segundo ele, na Suíça não há instrumento jurídico que fundamentasse um pedido desta natureza após prescrição.

— No Brasil é possível uma revisão criminal, interposta pela defesa, para inocentar condenados injustamente mesmo após anos do julgamento. Ele queria que o processo fosse reaberto para analisar o mérito, mas isso não foi possível e anularam o processo. Ele é tecnicamente inocente. — explica — Mas ainda fica o histórico: ele foi absolvido por conta de critérios processuais. E não porque não cometeu (o crime). Ainda carregará este ônus.

"Aliviado"

Cuca constituiu nova defesa para o caso após ver sua carreira interrompida quando o caso, que já era conhecido, reemergir quando foi contratado pelo Corinthians em abril do ano passado. Sob pressão, Cuca ficou dois jogos à frente do clube paulista e pediu demissão.

E, após argumentação da defesa de que o técnico foi condenado à revelia, sem representação legal, pedindo um novo julgamento, houve anulação da pena e a extinção do processo. Isso porque o Ministério Público suíço alegou que não seria possível um novo julgamento já que o crime estava prescrito.

Essa não deixa de ser uma vitória para o treinador que se manifestou via nota: "Hoje eu entendo que deveria ter tratado desse assunto antes. Estou aliviado com o resultado e convicto de que os últimos oito meses, mesmo tendo sido emocionalmente difíceis, aconteceram no tempo certo e de Deus", afirmou o técnico, em nota.

A advogada Luísa Watanabe de Mendonça, pós-graduada em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo e Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), também afirma que Cuca é inocente.

— É necessário desvincular o Direito da comoção social. O desfecho deste caso foi um desfecho previsto na legislação. Ele não poderia ter uma condenação sem ter tido uma defesa técnica e o caso não pode ser retomado no mérito por causa da prescrição. Falando tecnicamente, o que ocorreu é correto — declara Luísa, que diz fazer "uma avaliação fria e técnica". — Prefiro me restringir a este tipo de análise, uma vez que o caso é antigo e não tenho absoluto detalhamento do processo. Assim me sinto mais justa.

Ela lembra que, apesar de Cuca ter conhecimento da acusação, não tinha advogado constituído, uma vez que o advogado que teve à época renunciou à causa. Essa falha leva à anulação do processo neste momento atual e com pagamento de indenização a Cuca.

— Em um processo penal, é necessário uma defesa técnica. No Brasil, o juiz pode nomear um defensor. Sem isso, o processo é suspenso — compara a advogada. — Houve uma falha da Justiça suíça. Estava sem representação e agora, não tem como rever esta condição. Assim, não podemos dizer que ele foi condenado porque o processo foi anulado, em razão da prescrição. O processo, então, teve este desfecho em razão de questões formais e não relacionadas ao fato propriamente falando.