Economia
Fitch diz que mudança da meta fiscal tornará mais difícil para o Brasil melhorar a sua nota de crédito
Em entrevista ao GLOBO, diretor sênior de Ratings Soberanos, Todd Martinez, diz que declaração de Lula não significa guinada fiscal, mas 'riscos negativos' estão mais aparentes
A agência de classificação de risco Fitch, que melhorou a nota de crédito do Brasil em julho, de BB- para B, avalia que uma eventual mudança na meta de resultado primário de 2024 irá enfraquecer o arcabouço fiscal logo de saída e, por isso, irá tornar mais difícil uma nova melhora na avaliação do país. Por outro lado, explica o diretor sênior de Ratings Soberanos da agência, Todd Martinez, em entrevista ao GLOBO, as declarações de Lula não significam uma guinada na política fiscal, a ponto de tornar a dívida insustentável e provocar uma redução do rating. Para Martinez, o cenário base da agência ainda é de que Lula e Haddad vão evitar um ciclo vicioso na economia, que seria uma disparada do dólar, dos juros e, consequentemente, do endividamento público.
Confira abaixo a entrevista.
- Em julho, a Fitch melhorou a classificação de risco do Brasil. Agora, o presidente Lula disse que é improvável que a meta do déficit primário seja cumprida em 2024 e há possibilidade de a meta ser revista. Como a agência avalia essas novas informações?
Quando elevamos o rating do Brasil de BB- para BB, em julho, projetamos resultados primários já no limite inferior das faixas-alvo estabelecidas pelo novo quadro fiscal para os próximos anos. Mas sinalizamos riscos negativos para esta expectativa, e esses riscos estão se tornando cada vez mais aparentes com os comentários de Lula. Dito isto, o não cumprimento das metas não deverá ser uma notícia muito má para a classificação do Brasil, desde que não seja por uma ampla margem. É algo que provavelmente complicará qualquer melhoria adicional na classificação, em vez de levar a um rebaixamento.
- A agência citou a adoção de políticas que poderiam ameaçar a credibilidade da política fiscal e a sustentabilidade da dívida pública como fatores que poderiam piorar o rating. Esse tipo de informação se enquadra nesta categoria?
Não vemos os comentários de Lula como um sinal de qualquer mudança importante nos planos da política fiscal, até agora, mas sim de que o esforço de aumento de receitas pode ser mais difícil de alcançar do que se esperava anteriormente e, portanto, que a consolidação pode ser mais lenta. Isso significaria um início desfavorável para o novo quadro fiscal do Brasil, o que complicaria a melhoria da credibilidade fiscal e da dinâmica da dívida, que são as principais restrições à classificação do país. Mas quaisquer desvios ou modificações teriam provavelmente de ser de grande magnitude para minar enormemente a credibilidade fiscal, a sustentabilidade da dívida e, portanto, a classificação atual. Por enquanto, não temos grande confiança nos atuais planos fiscais das autoridades, mas vemos que estão a trabalhar na direção certa e esperamos que produzam resultados suficientes para evitar uma grande reação negativa do mercado.
- No relatório em que melhorou a perspectiva para o rating do Brasil, havia a previsão da Fitch de que o governo permaneceria na parte mais baixa da banda, ou seja, -0,25% do resultado primário do PIB em 2024. Agora a meta deve mudar, com um déficit maior. As projeções da dívida serão alteradas?
Se as autoridades mantiverem a atual meta fiscal para 2024, ou se a alterarem formalmente, provavelmente iremos rever negativamente as nossas projeções para o déficit primário para os próximos anos. Caso isso ocorra, terá naturalmente um impacto negativo nas nossas projeções de dívida.
- Isso coloca o Brasil ainda mais longe da média da dívida pública dos mercados emergentes?
A dívida/PIB do Brasil ficou em 74,4% em agosto. Isso está acima da mediana dos mercados emergentes, de 55%. E também é elevado em relação a outros grandes mercados emergentes, com exceção da Índia e da África do Sul. Mas, notadamente, a relação dívida/PIB é agora praticamente igual à de 2019, apesar do choque da pandemia e da grande resposta fiscal que ocorreu desde então. E ficou bem abaixo das projeções que tínhamos anteriormente para 2023, incluindo os 88% que projetamos quando rebaixamos o Brasil para BB- em 2018, e os 99% que projetamos em 2020 no auge da pandemia. Em suma, o elevado e crescente nível de dívida/PIB do Brasil é a sua principal fraqueza no crédito. Mas o nível e a tendência ainda são um pouco melhores do que esperávamos nos últimos anos, e este foi o principal impulsionador da nossa atualização.
- O Banco Central iniciou um processo de redução da taxa Selic, mas tem enfatizado a importância de o governo perseguir a meta fiscal. Como esse sinal do governo deve impactar a política monetária e, consequentemente, os gastos com juros e o déficit nominal do governo?
Os mercados e a política monetária continuam sensíveis aos riscos fiscais no Brasil. As expectativas de uma política fiscal mais flexível podem significar expectativas mais elevadas de inflação, exigindo que o Banco Central compense através de taxas de juros mais elevadas. E isso representa o risco de um ciclo vicioso: déficits primários mais elevados por si só significam um aumento mais acentuado da dívida/PIB, mas ainda mais se contaminarem os custos de empréstimos e pagamentos de juros, e ainda mais se isso minar a confiança e o crescimento económico. Esperamos que o governo Lula proporcione consolidação suficiente para evitar este ciclo vicioso. Mas o elevado nível da dívida pública do Brasil e a sua sensibilidade a estes riscos correlacionados continuam a ser uma das principais fraquezas e restrições à classificação.
- O crescimento do Brasil, por outro lado está ficando acima das expectativas. Isso pode mitigar uma piora das contas públicas?
A dinâmica econômica e a resiliência do Brasil nos últimos anos foram outra razão importante para a nossa atualização (do rating em julho). Embora esperemos um abrandamento do crescimento real do PIB para 1,3% em 2024, face a 3,2% em 2023, isto reflete principalmente alguma normalização na produção agrícola após a fantástica colheita deste ano, embora não esperemos um grande abrandamento na procura interna. Por um lado, sim, um maior impulso de crescimento seria uma boa notícia para as contas públicas. Mas seria um risco contar com um forte crescimento econômico para manter os objetivos orçamentais no caminho certo, em vez de um esforço de consolidação estrutural.
- Que avaliação pode ser feita, até o momento, da política econômica do governo Lula?
Lula certamente tem uma visão política diferente em relação ao seu antecessor, mas isso não significou mudanças radicais na política macro ou microeconômica, na nossa opinião. Um enfraquecimento na posição fiscal era provável em qualquer resultado eleitoral. O novo quadro fiscal da administração Lula ainda não conseguiu ancorar as expectativas, mas pelo menos vemos que coloca algumas barreiras de proteção contra resultados muito negativos. A sua administração não buscou grandes mudanças no quadro da política monetária, apesar de algum ruído inicial sobre este assunto, nem uma política parafiscal agressiva via BNDES. Na agenda microeconômica, embora não consigamos projetar crescimento a médio prazo que as autoridades estimam (cerca de 2,5% do PIB para os próximos anos), vemos elementos positivos. A reforma tributária é ambiciosa e visa abordar um dos maiores e mais antigos problemas de competitividade do Brasil, mas não está claro se irá melhorar as perspectivas de crescimento em breve, dado o longo período de transição e a adoção de muitas isenções. As autoridades estão interessadas em concretizar o potencial do Brasil para beneficiar da transição global para a energia verde, mas resta saber que ações concretas podem ser feitas para alcançar esse objetivo. Por outro lado, houve algumas iniciativas que consideramos contraproducentes para as perspectivas de crescimento e investimento (por exemplo, mudanças na regulamentação do saneamento), mas deve ser contidas pelo atual Congresso, que é conservador.
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