Economia

'Sem propósito para empreender, não vale a pena'; entrevista

a expansão de seu empreendimento de bicicletas elétricas, irmãos apostaram em alternativa de mobilidade que não era comum no Brasil e souberam engajar clientes

Agência O Globo - GLOBO 30/10/2023
'Sem propósito para empreender, não vale a pena'; entrevista
Vendas - Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

A dificuldade de obter carteira de motorista na China levou Bruno Affonso a criar com o irmão Rodrigo a marca de bicicletas elétricas Lev, em 2010, no Rio. Com 35 lojas no Brasil atualmente, os dois, este ano, inauguraram sua primeira fábrica em Manaus, para onde não de pode “ir pequeno”, como lembra Rodrigo. Ao relembrarem a trajetória de sucesso, os irmãos apontam os caminhos que podem ser seguidos por outros empreendedores de sucesso: desenvolver um produto que ofereça algo de novo, entender as necessidades do cliente, saber usar os imprevistos (como a crise de 2008) em seu proveito e amar o que se faz. “Não entramos só pelo retorno financeiro, queríamos causar um impacto”, lembra.

Canais O GLOBO: Acompanhe mais notícias no nosso novo canal do WhatsApp

De onde surgiu a ideia de fazer bicicletas elétricas?

Bruno: Eu me formei em Engenharia de Produção e em 2007 tive a oportunidade de ir a um congresso na China para ver produtos e softwares relacionados ao meu trabalho, numa empresa de tecnologia de GPS. Decidi ficar por mais tempo e, como para o estrangeiro não era simples tirar a carteira de motorista, percebi que a bicicleta elétrica poderia me ajudar. Naquele momento, a bicicleta elétrica era mais usada por pessoas mais pobres, trabalhadores. Eram muito simples, e decidi modificar a minha, para ficar mais a minha cara. Depois disso, comecei a convencer outras pessoas, estrangeiros como eu, a comprarem também. Nesse meio-tempo eu conversava muito com o Rodrigo sobre possibilidades de negócios que poderíamos trazer para o Brasil. Ele acreditou na ideia e comecei a visitar fábricas próximas de Pequim, até que começamos a desenvolver o nosso próprio modelo, com todas as características, cores e formas para agradar ao nosso público.

Míriam Leitão: Pequenas empresas estão otimistas com o ambiente de negócios

Apoio: BNDES alcança marca de R$ 65 milhões para micro, pequenas e médias empresas

Rodrigo: Para mim, naquele momento, uma bicicleta elétrica era igual a um disco voador. Uma coisa inimaginável. Qualquer coisa que se locomovesse, saísse da inércia, sem barulho, sem queima de combustível... nada era elétrico no Brasil. O país vivia a época da combustão ainda um pouquinho atrasado, e, na China, todos os trabalhadores usavam. Quando o Bruno veio ao Brasil no Natal de 2007, trouxe uma bicicleta na mala e falou: “Olha, o conceito é esse, mas não é o produto que a gente vai fazer. Nós vamos desenvolver nosso próprio produto”. O momento do convencimento foi quando eu vi o produto e andei. Fizemos uma pesquisa de mercado ali com amigos e familiares. Todo mundo que experimentava, adorava.

Bruno: Fundamental é que nós desenvolvemos nosso produto. Não compramos um de prateleira, que geralmente é o que acontece com os compradores de produtos chineses. Em vez de desenvolver o seu produto na China, ele vai lá numa fábrica, compra o produto que ela já desenvolveu e apenas troca a marca.

Rodrigo: Em 2008, veio a crise, então esperamos. Lançamos nosso produto no final de 2009, início de 2010.

Bruno: Acabou sendo bom porque tivemos tempo de desenvolver o produto. No Brasil, a gente teria que convencer os cariocas, imprimindo cor, e fazendo um produto que agradasse tanto aos homens quanto às mulheres. Sabíamos que não poderia ser uma bicicleta para uma única pessoa usar. Pusemos banquinho, cestinha, com conforto para a pessoa que está sendo carregada.

Rodrigo: Antes não se falava de bicicleta masculina com cestinha, hoje todas têm. A cestinha antigamente estava muito ligada àquelas bicicletas tipo a Ceci, da Caloi, muito femininas. No começo, os homens pediam para tirar. Depois acabavam pedindo para voltar. Viam como era prático.

A ideia de investir em lojas físicas tem a ver com essa imagem que queriam passar?

Bruno: Por usar muito a bicicleta elétrica, eu entendia o que o meu cliente queria e precisava, e decidimos seguir aquilo como convicção. A questão de ter a loja próxima do cliente, de todas as as nossas lojas terem a oficina, com outro perfil. Não seria aquela oficina com vários produtos amontoados. Sempre fomos muito fiéis ao que acreditávamos e fomos recompensados desde o primeiro dia. Nós não entramos nisso só por causa do retorno financeiro, mas porque queríamos causar um impacto. As lojas, apesar de serem um investimento grande, de exigirem treinamento dos funcionários, eram também uma forma de engajamento dos clientes.

Rodrigo: Uma coisa que pensamos é que o produto tinha que ser com peças exclusivas. O cliente sempre estaria nas lojas, tendo manutenção, uma experiência positiva de pós-venda, de assistência técnica. O Bruno conseguiu passar que aquilo não era concorrente da bicicleta de performance, era para o dia a dia, uma opção de mobilidade. As pessoas falavam que o nosso produto era produto de preguiçoso, e a gente brincava que era produto de cheiroso, de pessoas que queriam ir de bicicleta para o trabalho sem chegar suadas.

Como é empreender com o irmão? O que acontece quando vocês discordam de alguma coisa?

Rodrigo: Nossa relação é positiva porque nós passamos muito tempo longe. O Bruno passava muito tempo na China e, quando estava no Brasil, começava a ter atritos, ele já estava voltando para a China novamente.

Bruno: Na pandemia, eu vim para o Brasil, e por conta de ficarmos os dois muito tempo juntos no mesmo espaço, começamos a ter mais atritos. Mesmo assim, foi positivo para evoluirmos como sócios e até mesmo na nossa relação como irmãos. A gente tem tanta coisa para fazer ainda que acaba deixando para lá aquela divergenciazinha que não vai levar a nada.

Rodrigo: Tem a questão da criação. Nossa base familiar é muito forte. A gente pode brigar, mas dá meio-dia e a gente senta junto à mesa para almoçar e deixa as brigas de lado. Você tem que saber que não vai levar todas, e que é bom ter opiniões diversas.

Como é ser empresário hoje no Brasil?

Rodrigo: Há o empresário que empreende no Brasil e o empresário que empreende no Rio. No Rio, é mais difícil ainda. Mas acho que é tudo resiliência, acreditar que as coisas vão funcionar. Enxergar os problemas de uma forma positiva. Empreender no Brasil é muito positivo porque as pessoas aprendem a ser muito criativas. É tanta coisa contra que, se você não se diverte e não aprende com os problemas, você acaba não crescendo.

Bruno: Você tem de amar o que faz. Se olhar aquilo só como oportunidade de ganhar dinheiro, não é suficiente para superar todos os problemas.

Rodrigo: Se você não tiver propósito como empreendedor, acho que não vale a pena. É o que a gente tenta implementar internamente. A gente vai vendo transformações em cada estado em que entra. Fui a São Paulo e fiquei orgulhoso de ver várias pessoas em uma ciclovia da Faria Lima usando a bicicleta da Lev.

Quais desafios vocês já enfrentaram e ainda enfrentam?

Rodrigo: A parte tributária é importante mencionar. Hoje o preço da bicicleta elétrica é 89% imposto. Se pensar na bitributação, ultrapassa os 100%. A ida para Manaus se resume muito a isso. Mas, para Manaus, você não pode ir pequeno, e a maioria das pessoas começa a empreender pequenas. Só neste ano a gente conseguiu entender que já era o momento de ir, porque a produção hoje é suficiente para uma montadora superavitária. Em Manaus, o imposto cai de praticamente 90% para 10% a 15%.

Bruno: Mas tem os custos de logística por conta da distância. Mas é a única solução que temos para conseguir baratear e criar uma cadeia produtiva no Brasil.