Curiosidades
No Rio desde 2022, cubano Zé Angel usa mantas térmicas de emergência para criar suas telas
Pintor inaugurou neste sábado (22) a mostra individual 'Clareira', na Galeria Inox, e é um dos artistas da coletiva 'Adiar o fim do mundo', em cartaz na FGV Arte
À primeira vista, os pontos dourados aplicados a telas a óleo por Zé Angel parecem folhas de ouro, item tradicionalmente usado em obras de arte e em detalhes decorativos de projetos arquitetônicos. Logo o artista cubano radicado no Rio, que inaugurou ontem a individual “Clareira”, na Galeria Inox, em Copacabana, Zona Sul da cidade, esclarece que o material vem de recortes de mantas térmicas de emergência, usualmente oferecidas a refugiados que se arriscam em travessias marítimas, para evitar hipotermia.
Com o dourado que, na história da arte, alude ao luxo e a riqueza, e, no cotidiano de massas de imigrantes, representa o primeiro acolhimento num dos momentos de maior vulnerabilidade humana, Zé Angel aborda questões referentes à identidade, deslocamento, fé e crise migratória. Além dos 15 trabalhos mostrados na Inox, o artista está entre os XX artistas da coletiva “Adiar o fim do mundo”: a mostra em cartaz na FGV Arte, em Botafogo, traz sua “Isolamento I”, pintura a óleo sobre manta térmica.
— Sempre gostei de pintar paisagens, mas em Cuba fazia um trabalho mais comercial. Com 18 anos tinha uma barraquinha na praia, criava paisagens caribenhas de encomenda para me sustentar, mas não era o que queria. Até hoje a minha paleta é mais reduzida, para evitar esse tropicalismo — explica o pintor de 33 anos. — Depois de um tempo, senti necessidade de falar de mim como imigrante, de Cuba, do Caribe, da América Latina. E comecei essas séries no ano passado.
Nascido em Holguín, a 700 quilômetros de Havana, onde se formou em Belas Artes, José Angel Pérez estudou na Escuela Internacional de Cine y TV de Cuba, em San Antonio de los Baños, bastante frequentada por estudantes brasileiros. Após se mudar para o Rio em julho de 2022, o pintor conseguiu expor no Instituto Cervantes, em Botafogo, no ano seguinte, mesma época em que conheceu Carlos Bobi, referência da street art carioca. Com ele, montou a escola Radar, na Rua da Quitanda, no Centro, que oferece bolsas a alunos periféricos e promove oficinas em comunidades.
Nas séries que apresenta na mostra (“Isolamento”, “Êxodos” e “Fraturas”), Zé Angel leva a referência do Romantismo, como as marinas do inglês William Turner (1775–1851), para o contexto caribenho — em “Fratura I” e “Fratura II”, a manta térmica aplicada sobre as ondas revoltas tem a forma da Península da Flórida e a Ilha de Cuba, respectivamente. Entre elas, uma imagem da Virgen de la Caridad del Cobre, padroeira do país e sincretizada com Oxum na tradição afrocaribenha, a quem os emigrantes pedem proteção antes de se lançar ao mar.
— Cuba hoje sofre o pior êxodo da sua história, mais de dois milhões de pessoas saíram em pouco tempo. A Flórida sempre foi o principal destino, mas agora o ICE (Serviço de Imigração e Alfândega) está prendendo e deportando até gente estabelecida há anos, muitos eleitores de Trump, inclusive — comenta o pintor. — Quero pensar que Trump vai passar e outro ciclo vai ter início, mas esses retrocessos acontecem no mundo todo.
Em março, Zé Angel voltou pela primeira vez a Havana, onde vivem seus pais, e impressionou-se com as ruas vazias e os conhecidos que também já não estão na ilha.
— Nunca sofri nada de xenofobia ao chegar ao Brasil. Claro que existe a radicalização do “vai pra Cuba”, mas, por outro lado, também me incomoda uma certa romantização da vida lá — diz Zé Angel. — Durante um período, tivemos muitos resultados sociais, mas que infelizmente se desgastaram. Precisa haver uma mudança, e falo isso como uma pessoa de esquerda. Mas não uma mudança feita por gringos, nós cubanos que temos de fazer acontecer.
Mesmo passando por temas áridos, o curador da mostra, Rubens Takamine, vê espaços de esperança e refúgio nas áreas de luz criadas pela tinta a óleo ou pelo brilho das mantas térmicas.
— “Clareira” pode ser uma área livre em meio à vegetação densa, ou uma fresta entre as nuvens, que permite a passagem da luz após a tempestade. Esses pontos de luminosidade também aquecem, da mesma forma que as mantas fazem — compara Takamine. — Isso também transparece na prática do Zé, não só como um grande pintor, mas como um artista educador.
Na obra selecionada pelos curadores Paulo Herkenhoff e Ailton Krenak para a coletiva da FGV Arte, está representada uma ceiba, árvore comum na América Central e considerada sagrada em Cuba. No primeiro trabalho em que pintou sobre a manta térmica, Zé Angel retratou a ceiba da escola de cinema, para a qual diz ter feito muitos pedidos antes de deixar a ilha. Para usar o material de suporte, fixado sobre uma placa de madeira, o pintor desenvolveu uma técnica própria e a preparação da tinta a óleo:
—A superfície é muito lisa, é quase como pintar sobre um vidro. Então faço uma base primeiro para pintar por cima. E a pincelada também retira a tinta, fica a marca, tem obras que parecem gravuras. Depois de seca, eu aplico um verniz para proteger.
Herkenhoff explica que Zé Angel foi incluído em “Adiar o fim do mundo” no contexto das invenções simbólicas de paisagens, confrontado com as “Paisagens imaginárias” barrocas de Guignard e as árvores flutuantes sagradas da santería afro-cubana de seu compatriota Jorge Mayet.
— O elogio da árvore como garantia da vida na Terra de Pérez tem sua gênese na tela “La Jungla” (1942, coleção MoMA) do surrealista Wifredo Lam, que povoou a selva de Cuba com fantasmagorias que fundem gente, máscaras Baulês e vegetação — contextualiza o curador. — Lam, Angel e Mayet formam um trio cubano de louvação mágica do mundo vegetal.
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