Curiosidades

Resenha: Sem nostalgia, Cristovão Tezza constrói retrato afetuoso baseado em diários deixados pelo pai

Premiado com o Jabuti e o Portugal Telecom, escritor catarinense descobre dentro de casa um ‘personagem comum’ que abre espaço para reflexões sobre o mundo

Agência O Globo - 22/11/2025
Resenha: Sem nostalgia, Cristovão Tezza constrói retrato afetuoso baseado em diários deixados pelo pai
Cristovão Tezza - Foto: Reprodução / Instagram

Personagem sempre em alta desde tempos bíblicos, a figura paterna é o centro do recém-chegado “Visita ao pai”, de Cristovão Tezza. Prêmio Jabuti e Portugal Telecom, entre outros, pelo gigante “O filho eterno” (2007), o escritor catarinense traz agora um livro centrado nos 26 diários deixados por João Batista Tezza, morto num acidente de lambreta, aos 48 anos.

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Cristovão, seu caçula, tinha 6 anos, e hoje, aos 73, publica um retrato alentado do pai (nada açucarado, como costuma acontecer por aí). Mantendo óbvia distância do seu protagonista, ele esbanja sinceridade, elemento central da sua arte, e não perdoa os vacilos do falecido — que, afinal, era um sujeito demasiado humano.

Sempre antenado e crítico, Cristovão logo alerta que não está interessado em evocar sua ancestralidade, “esse culto ostensivo que está na alma oral de todas as culturas tribais e que ressurge forte na vida contemporânea, a mitologia dos antepassados servindo de capa ideológica aos mais antípodas pontos de vista”. Logo em seguida, registra que “a escrita é uma realidade dupla que pouco a pouco substitui os fatos que lhe dão origem” — e aí mergulha justamente na tal da ancestralidade, mas resguardando-se de arroubos metafísicos.

Nascido em 1911, numa família de imigrantes italianos em Santa Catarina, João Batista inicialmente viu no Exército um futuro possível para garantir alguma dignidade. Quando começou a escrever diários, aos 19 anos, era pouco mais que um analfabeto funcional, bem limitado. Fazia apenas um inventário do seu dia a dia, reproduzindo telegramas, bilhetes, cartas... Nada de ficção.

Mas a prática e a disciplina o fizeram tomar gosto pela escrita enquanto a vida seguia adiante. O domínio da linguagem representou uma “duríssima passagem de descoberta e afirmação pessoal”, como interpreta o filho.

Aí é que está uma das graças do livro. Mais uma vez, Cristovão descobre (dentro de casa) um “personagem comum” que ao longo do tempo ganha espaço na paisagem e abre espaço para novas reflexões sobre o mundo.

Machismo estrutural

Organizado, João Batista é um suboficial que não descuida dos estudos, conquista novas patentes, pede baixa para migrar para o serviço público, envereda pela contabilidade, vai tocando sua vida com planejamento. É também um sujeito namorador, que registra nos diários conquistas e derrotas.

Nesse quesito, não é exatamente um exemplo a ser seguido: sua trajetória prepara momentos que ele viveria, anos depois, no casamento com Elin, a mãe do escritor, vítima de um machismo estrutural em estado bruto, tão afeito ao seu tempo e espaço social. Cristovão também apresenta as ideias políticas do pai, hoje deveras antiquadas, embora ainda capazes de causar paixões tresloucadas.

Nesses e em vários outros momentos, quando a história do pai meio que se esfarela por falta de graça ou assunto mesmo, o escritor puxa para cima o ritmo da narrativa. Ora dá um tom novelesco, ora se mete a falar de si. Com certa humildade, mas sem camuflar vaidades, compara-se ao pai aqui e ali, atestando semelhanças entre eles — ou, quando convém, suas divergências. Quem nunca?

Livro extenso, “Visita ao pai” flui porque não tem nada de narrativa artificial. Tudo é bem costurado nesse paralelismo entre pai e filho separados por décadas de distância, e assim também se constrói uma pré-autobiografia disfarçada, em que Cristovão apresenta sua própria formação, e parte da carreira vitoriosa, em meio a um tributo ao pai (não intencionalmente) ausente.

Impossível não pensar, aliás, que a mãe também merece um perfil alentado, se for o caso. (E é curiosa essa fixação dos escritores pelas figuras paternas. Freud explica.)

Mas nada de nostalgia lamurienta ou carências afetivas. Como nos seus 28 livros anteriores, Cristovão novamente ganha o leitor com a profunda sensatez com que trata da vida que lhe coube, na alegria e na tristeza. Não tem essa de acerto de contas com o passado, desculpa amplamente usada para justificar a publicação de muita coisa ruim.

Autodenominado “filho ficcionista”, o escritor também preenche com dados ou alguns devaneios, de vez em quando, lacunas abertas nos registros do pai. Mas esses devaneios, sempre tão cabíveis e explícitos, não seriam o suficiente para classificar o livro como ficção, como se vê na ficha catalográfica (ou quando Cristovão fala em “romance de memória”). A não ser, claro, que tudo fosse mesmo uma grande farsa literária, no melhor dos sentidos. Seria perfeito.

Cotação: Muito bom