Os donos da fé
Há tempos, o céu deixou de ser apenas morada de santos.
Virou também território de campanha.
O altar, que antes era refúgio da alma, hoje parece um palanque disfarçado, iluminado por refletores, câmeras e microfones.
E o sermão, que um dia guiava consciências, agora dita votos.
Os donos da fé descobriram que o milagre mais rentável não é o da cura, mas o da influência.
E que o Espírito Santo, quando bem administrado, rende mais que o petróleo.
Pastores erguem templos monumentais, enquanto padres, em suas homilias, vão trocando o latim pelo jargão político.
Cada um tenta salvar o povo à sua maneira — mas há dias em que parece que todos estão apenas tentando salvá-lo para si.
O céu virou patrimônio de disputa.
E cada fiel, uma alma com título de eleitor.
“Deus acima de todos” virou senha de acesso ao poder.
Mas lá de cima, talvez Deus olhe e pense: “Eles continuam me usando como escada”.
Porque, cá embaixo, o nome divino virou slogan de conveniência, carimbo de pureza e salvo-conduto para a hipocrisia.
Enquanto isso, o pobre segue com a fé intacta — é o único tesouro que ainda não conseguiram taxar.
Nas praças, nas redes, nos púlpitos e plenários, o discurso é o mesmo: “em nome de Deus”.
Mas Deus, coitado, nunca pediu isso.
O Cristo que andava descalço pelas estradas da Galileia talvez nem fosse aceito nas igrejas que levam o seu nome.
Seria barrado na porta por não vestir terno, não pagar o dízimo, nem ter seguidor suficiente para ser considerado relevante.
A fé virou palco.
E quem sabe falar bonito, chorar no tempo certo e erguer a mão com teatralidade já tem meio caminho andado até o poder.
Aliás, há muito o poder descobriu o perfume do incenso — e o incenso descobriu o sabor do poder.
Enquanto o povo se ajoelha pedindo um milagre, há quem conte as ofertas.
Enquanto o fiel acredita na salvação, há quem invista na próxima campanha.
E enquanto o altar deveria ser lugar de paz, ele se transforma em arena — onde o pão é o voto e o vinho é a promessa.
Mas nem tudo está perdido.
Ainda há fé de verdade, silenciosa, quase tímida — aquela que não precisa de palco, nem de aplauso.
Ela mora na mulher que acorda cedo e faz o sinal da cruz antes do trabalho.
No homem que, mesmo traído pela política e pela religião, ainda acredita em algo maior do que os dois.
Essa fé, ninguém compra, ninguém vende, ninguém manipula.
Ela é o último milagre possível.
E talvez seja por isso que, apesar de tantos donos, a fé continua órfã.
Porque quem tenta possuí-la, perde o direito de tê-la.
E quem a guarda em silêncio, esse sim, ainda conversa com Deus — sem microfone, sem plateia, sem marketing.
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