Alagoas

Pesquisa arqueológica revela novos caminhos do Quilombo dos Palmares

Evidências de cultura material em contexto de resistência e busca pela liberdade pode ser encontrado pela primeira vez no Quilombo mais importante da América Latina

Ryan Charles – estudante de jornalismo (Ascom Ufal 22/12/2025
Pesquisa arqueológica revela novos caminhos do Quilombo dos Palmares
Em novembro foi assinado o Termo de Execução Descentralizado (TED), que investirá R$ 300 mil na realização da pesquisa na região

A Serra da Barriga, localizada em União dos Palmares, na Zona da Mata de Alagoas, é um dos maiores símbolos da história brasileira. Patrimônio Cultural desde 1986, com inscrições nos Livros do Tombo Histórico, Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, o local recebeu, em 2017, o título de Patrimônio Cultural do Mercosul. O reconhecimento consagra a Serra como o coração da resistência negra, por ter abrigado o Quilombo dos Palmares, o maior território de liberdade do período colonial na América Latina.

No entanto, uma descoberta recente promete reescrever o que sabemos sobre as dimensões desse território. O cartógrafo histórico Levy Pereira identificou, na biblioteca da Universidade de Harvard (EUA), um mapa inédito que amplia significativamente o entendimento sobre a ocupação quilombola. O documento é uma versão manuscrita do Brasilia Qua Parte Paret Belgis (A parte do Brasil que pertence aos neerlandeses), obra do matemático e naturalista George Marcgraf. Composto por nove mapas das capitanias durante o século XVII, o registro data do período em que os holandeses controlavam parte do Nordeste brasileiro.

A partir desse achado, pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) – Campus do Sertão, em parceria com a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), formaram uma equipe multidisciplinar para realizar uma pesquisa inovadora que vai se aprofundar nas investigações acerca deste território histórico.

Estudos profundos

Segundo Flávio Moraes, arqueólogo, professor do curso de História da Ufal no Campus do Sertão, e um dos coordenadores da ação, os estudos realizados em torno da Serra da Barriga e dos Quilombos dos Palmares, eram até então, geograficamente limitados e existe a necessidade de explorar uma região culturalmente vasta: “do ponto de vista historiográfico, há indicações de que a Serra da Barriga foi, de fato, um dos espaços centrais de Palmares, mas o quilombo não se restringia a ela. Era um território muito mais amplo, com diversas concentrações de mocambos distribuídas pela região”, explica o professor.

Com o documento em mãos, as pesquisas avançaram na identificação de novos sítios. A equipe baseou-se em relatos de cronistas holandeses que descreviam diferentes núcleos habitacionais, referidos como “Velho Palmares”, “Outro Palmares” e “Palmares Grande”, em áreas que englobam tanto Alagoas quanto Pernambuco. “Utilizamos referências geográficas mencionadas pelos cronistas e realizamos a conversão de medidas históricas para quilômetros e metros. Ao sobrepor mapas antigos às imagens de satélite atuais, conseguimos delimitar três ‘áreas sensíveis’, onde acreditamos que estavam esses aglomerados de mocambos”, detalha Moraes.

A descoberta não apenas mapeia novos locais, mas confirma que Palmares era uma rede complexa e vasta de povoamentos que desafiou o sistema colonial durante décadas. “Identificamos feições na superfície do solo, alterações que parecem intencionais e que indicam a construção de fossos e paliçadas de proteção, práticas comuns em espaços de resistência, já que esses grupos eram constantemente perseguidos. Essas evidências foram observadas em visitas rápidas de reconhecimento de superfície, especialmente nas áreas que identificamos como o Velho Palmares e o Outro Palmares. Em janeiro, realizaremos a escavação de sondagens para confirmar essas hipóteses, através, quem sabe, da identificação de artefatos em subsuperfície”, conta.

Início de uma nova história

A grande apoiadora das escavações é a Fundação Cultural Palmares (FCP), que há 37 anos vem realizando ações para preservar e valorizar a história e a cultura afro-brasileira. No último 20 de novembro, data em que se celebra o Dia da Consciência Negra, Flávio subiu a serra junto com o presidente da FCP, João Jorge Rodrigues, o reitor da Ufal, Josealdo Tonholo, e o Diretor da FCP Guilherme Bruno dos Santos, para a assinatura solene do Termo de Execução Descentralizado (TED), que investirá R$ 300 mil na realização da pesquisa.

“A assinatura em uma data tão significativa reforçou o objetivo principal da pesquisa, que é promover uma guinada histórica no acesso a informações que, até hoje, foram intencionalmente apagadas. O 20 de novembro tem um peso simbólico enorme para o movimento negro e para as comunidades de terreiro, sendo o momento ideal para reafirmar o compromisso com a verdade histórica”, afirma Flávio.

O financiamento inicial da pesquisa é de 18 meses, com início em janeiro de 2026, período em que a equipe buscará a cultura material porventura existente que os documentos relatos dos cronistas não revelam. “Conhecemos bem os instrumentos de opressão, mas sabemos muito pouco sobre os espaços onde essas populações viviam, seus rituais e festas. Nosso trabalho quer trazer à luz o cotidiano palmarino por meio de objetos que indiquem permanência e produção de conhecimento”, pontua o professor.

Segundo Flávio, historicamente construiu-se um imaginário que associa povos negros ao atraso, focando apenas na escravidão e nos instrumentos de tortura, enquanto os espaços de liberdade, rituais e tecnologias desenvolvidos nos quilombos foram ignorados pelas narrativas oficiais: “a arqueologia tem o papel fundamental de combater o apagamento da cultura negra na sociedade brasileira. Esse trabalho permitirá contrapor essas narrativas coloniais, dando voz e protagonismo aos próprios povos de Palmares e reforçando a importância desse quilombo como símbolo máximo de resistência e busca pela liberdade no Brasil, e nas Américas”, afirma.

Além de Flávio, participam da equipe os arqueólogos Onésimo Santos e Daniel Ferreira; o cartógrafo Levy Pereira, os historiadores Bruno Miranda (UFRPE); Felipe Damasceno, Danilo Marques e Zezito Araújo; o antropólogo Vágner Bijagó, do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi/Ufal – Campus Sertão), e o profissional em audiovisual Leandro Pereira, além dos estudantes, que serão fundamentais para a formação acadêmica.

A ciência produzida no Sertão

A iniciativa vem chamando a atenção de pessoas de todo o mundo. Flávio conta que diversos veículos nacionais e internacionais têm dado visibilidade ao projeto devido à sua natureza inovadora. “Recentemente, por exemplo, demos uma entrevista para uma mídia alternativa alemã que costuma divulgar grandes projetos arqueológicos, como pesquisas em Stonehenge e no Egito. Isso mostra o alcance e a relevância do que estamos desenvolvendo”, exalta.

Para ele, a pesquisa coloca a Universidade em outro patamar como referência na área de pesquisa e extensão, e destaca que a ciência feita em campi como o do Sertão merece mais atenção institucional: “é importante destacar a relevância da interiorização da universidade. Eu sou professor do Campus do Sertão e faço questão de enfatizar isso, porque esse projeto demonstra que a expansão das IES foi exitosa. No campo da arqueologia, esse projeto ganha ainda mais importância porque o único núcleo de arqueologia da Ufal está hoje no Campus do Sertão. A produção de conhecimento não acontece apenas na capital”, reafirma.

Para o futuro, Flávio espera que, unindo a escuta aos trabalhos arqueológicos, os resultados da pesquisa abram espaço para outra visão sobre o que é socialmente difundido a respeito das vivências do povo negro.

“Qualquer procedimento será realizado em diálogo com comunidades de terreiro e com a Fundação Cultural Palmares. Nosso trabalho tem sido pautado pela escuta e pela consulta às comunidades negras, justamente para evitar práticas coloniais que historicamente impuseram pesquisas sem considerar os interesses e valores dos povos envolvidos. A arqueologia é, por natureza, uma ciência coletiva. Por isso, os méritos e reconhecimentos precisam ser sempre compartilhados”, finaliza.