RJ em Foco
'É duro ouvir do filho que ele gostou de ser bandido': Mãe relata batalha para salvar jovem do crime; ele era associado ao CV da Penha
Série de reportagens especiais do O GLOBO mostra como o que está por trás da cooptação de jovens para o tráfico
A perda do filho único aconteceu há dois anos. Fernanda (nome fictício) estava no trabalho quando recebeu a ligação de uma amiga: “acho melhor você ir para casa”, disse, antecipando que algo tinha acontecido com o rapaz de 19 anos. Na hora, a mãe duvidou da notícia, principalmente porque, no dia anterior, uma informação falsa anunciou a morte dele. A amiga insistiu. No desespero, Fernanda tentou fazer contato com ele e, pela ausência de resposta, soube que, daquela vez, era verdade. Até hoje, seu filho é homenageado pelos garotos da Penha por ser "um precursor do grupo". No final do mês passado, ela concedeu uma entrevista ao GLOBO, na qual abordou a entrada do filho no crime e sua luta para recuperá-lo. Leia o relato na íntegra.
Marketing do crime:
A busca por corpos na mata da Vacaria:
“Eu sempre fui uma mãe que nunca tapou o sol com a peneira. Meu filho não era um coitadinho. O lugar onde ele foi traficar, foi onde eu nasci e me criei. E eu morava lá porque meus pais realmente não tinham condições. Quando eu fiz 22 anos, já mãe dele, resolvi alugar uma quitinete em outro bairro. Eu não tinha nada. Eu saí com a cara e com a coragem, porque eu não queria mais aquilo ali para a minha vida. Eu trabalho desde os meus 16 anos, né? Tive ele com 20.
Até eu me estabilizar, meu filho ficou com meus pais na Penha. Consegui um trabalho e, em quatro meses, tive dinheiro para comprar as coisas necessárias e levei ele para morar comigo. Enquanto eu trabalhava, meu pai continuava cuidando dele na minha casa. Meu filho foi crescendo. Colocamos ele numa escola de natação, mas, depois, mudamos para uma de futebol. Meu pai levava e buscava e, quando eu estava de folga, fazia isso também. E ele sempre foi uma criança que estudou em escola particular. Quando ele tinha quatro anos, eu casei, e esse homem me ajudou a criá-lo. Claro, ele também tinha o pai biológico que, entre aspas, era presente. Ele morava na Penha.
Quando ele tinha 14 para 15 anos, decidiu morar com o pai. E assim, conheci os piores anos da minha vida. Comecei a perder o meu melhor amigo. Nessa fase da pré-adolescência, ele era muito companheiro, era tudo eu e ele. Essa mudança me doeu, mas era direito dele. O pai sempre teve uma postura de não colocar limites, até me desautorizava quando eu o colocava de castigo. Comigo, tudo era monitorado, eu sabia onde ele tava, com quem tava. Acho que ele foi se sentindo muito sufocado com esse meu jeito... mas sou mãe.
Durante a mudança, ele foi tirando notas ruins e acabou repetindo de ano. Comecei a ser chamada várias vezes para conversar sobre o comportamento dele. E foi aí que vi que o negócio não estava legal. Até que um dia, sou chamada porque ele tinha levado maconha e oferecido aos amigos. Achei estranho, nem beber eu bebo.
Ele ficava de 15 em 15 dias na minha casa. Costumava levar umas coisas e, dentro de uma bolsinha, eu achei maconha. Falei: “Não é possível”. Chamei ele pra conversar, e ele bateu o pé que era de um amigo, mas eu sabia que não era. Pedi para ele se abrir, me contar se estava acontecendo algo, mas ele se fechou.
Um certo dia, minha mãe me ligou e falou que ele não tinha aparecido. Foram ver pela comunidade, e uma menina falou que ele estava em Cabo Frio. Não entendemos nada. O pai continuou sondando e descobriu que, na verdade, ele estava em Angra dos Reis. E foi assim que descobrimos que ele tinha entrado para o tráfico: foi para lá traficar.
Eu saí correndo do trabalho e fui com o pai dele até lá. Fomos perguntando para as pessoas onde era o lugar, tínhamos uma descrição simples. Era uma favela baixa, de bairro. Quando nós entramos, um carro da polícia chegou junto. Eu entrei em desespero, pensei: “Meu Deus do céu, e agora?”. O pai começou a ligar para ele, e ele nada de atender. Continuamos insistindo, até que ele atendeu e falou: “Não posso atender, está cheio de polícia”.
Foi me dando um pânico, até que a viatura saiu, ligamos de novo para ele e eu falei: “Onde é que você tá? Eu vou aí, vou te buscar”. Ele disse que só sairia com os outros garotos porque não ia deixar ninguém para trás. Eu só queria meu filho vivo e em segurança. Depois, em casa, eu conversei com ele: “Poxa, vamos voltar a morar comigo”. Mas ele não quis. Então, tentei colocar na cabeça dele que ele precisava sair do tráfico. Chegamos até a dar mesada para ele, achando que ia resolver.
Achei que as coisas estavam melhorando até um vídeo dele roubando um carro viralizar. Eu não acreditei. Foi a primeira vez que ele foi apreendido. Como era primário, conseguimos levar ele para casa. Na pandemia, ele foi apreendido de novo e, dessa vez, levado para o Degase. Ele ficou 14 dias recluso, sem contato algum com a gente. Depois desse período, pude visitá-lo e vi meu filho todo machucado. Essa reclusão não regenera ninguém, meu filho saiu de lá com mais revolta. Foi onde eu vi que o Estado não se importa, principalmente com pobre.
Eu entrei na ouvidoria e fiz uma reclamação formal do agente que tinha batido no meu filho. Depois, fiquei sabendo que ele foi afastado da função. As mães ficam com medo de denunciar, acreditando que isso vai piorar a situação do filho, mas, assim, já está ruim, sabe? Algo precisa ser feito.
Ele saiu da unidade e, duas semanas depois, lá estava a gente de novo. Decidi, então, junto com o pai dele, falar com um dos chefes da Penha. Pedi para ele liberar meu filho, falei que não tinha criado ele para isso. Ele falou: “E a senhora acha que minha mãe criou?”. Ele me ouviu, respeitou o pedido e liberou meu filho. Olha, eu nunca vi uma pessoa chorar tanto por ser afastada do tráfico. Ele só falava assim: “Quando eu fizer 18 anos, eu vou fazer tudo o que eu quiser”. E assim foi.
Com 17 anos ainda, ele foi apreendido de novo. Ficou três meses e saiu mais revoltado do que nunca. A questão do roubo só ficou pior, e eu só sabia porque as pessoas mandavam mensagem, vídeo. A gente já não aguentava mais aquela situação. Em um dos crimes, ele foi baleado na perna. Eu estava em casa, a namorada dele me ligou: “Tia, seu filho levou um tiro”. E não foi a primeira vez, ele já tinha sido atingido nas costas. Foi muito livramento. Eu orava muito, pedia sempre por ele.
Eu falei pra ela: “Cara, não quero saber. O problema é dele. Se precisar de remédio, qualquer coisa, me liga”. Nisso, ela conseguiu tirar ele de lá, dentro de um carro e levou ele para a Penha. De lá, ele me ligou: “Mãe, pelo amor de Deus. Vem para cá, eu vou morrer”. Quando eu vi, já estava lá. Lembro de ver vários lençóis sujos de sangue. Nem bicho merecia estar naquele lugar ali. Ele deitado num colchonete imundo, com soro injetado na veia e suspenso numa vassoura. Falei que ele precisava ir para o hospital, mas ele se negou com medo de ser preso. Disse que queria ir para a casa da vó e, em menos de dois minutos, apareceu um carro para fazer isso. Eu me recusei a entrar nele, não queria ficar ali com os outros meninos. Fui de mototáxi. Eu achava o tempo todo que ele ia morrer, porque era muito sangue perdido.
Ele ficou 16 dias na casa da minha mãe. O tráfico contratou um médico pra ir lá. Eles têm tudo, máquina de raio-X, tudo, tudo. Nessa, descobriram onde a bala estava. Por chamada de vídeo, meu filho avisou que, segundo o médico, ele já tinha perdido um dos dedos do pé, o sangue não estava circulando. Fomos para o hospital. Primeiro, em Manguinhos. Um médico olhou e disse que não era nada. Na Penha, conseguimos atendimento de um especializado que nos aconselhou a levá-lo o mais rápido possível na emergência. Fizemos isso, ele ficou internado e começou a saga para tentar recuperar a perna dele. A namorada acabou contando que ele tinha sido baleado, e a polícia foi chamada. Meu filho ficou sob custódia, e eu fiquei um mês sem vê-lo, o contato era só pelo centro policial da unidade.
Uma médica fez uma cirurgia na perna dele, tiveram que implantar uma veia artificial. Todo dia eu ia lá, todo mundo do plantão policial já me conhecia. Tive que entrar com ação judicial para fazer as visitas. Paguei advogado, uns R$ 15 mil na época, e eu não tinha mais onde pegar dinheiro, fazer empréstimos. Quando finalmente consegui a permissão para ve-lo, um policial veio até mim e falou: “Olha, aconteceu uma coisa. Ele teve uma complicação e precisaram amputar a perna dele”. Eu não entendi nada! Fiquei desesperada, não falava coisa com coisa. Veio um filme na minha cabeça. Como uma pessoa de 18 anos está passando por tantas coisas assim? Tiraram a perna dele e ele estava sozinho. Eu não estava, eu não sabia. Foi mais de uma hora até eu me acalmar.
O quarto que ele estava era o último do corredor. Ele me ouviu e começou a gritar: “Mamãe, mamãe”. Esse som, essa voz... foi um misto de sentimento, de emoção. Eu não conseguia falar, só chorar. A gente se abraçou, e ele só falava que tinha perdido a perna. A única coisa que eu consegui falar foi: “Você precisou perder uma parte do seu corpo para acordar para a vida?”. Eu ia lá todos os dias. Os policiais que ficaram com ele eram muito gente boa, tentavam aconselhar, conversavam, mas meu filho tinha muita raiva, dizia que não queria o papo deles porque “policial é bandido igual a gente, só fazem maldade”.
Quando ele recebeu alta, tentaram pedir transferência para Bangu. Eu fiquei indignada, disse que não era assim, que ele tinha que ir para o Degase, já que ele não tinha completado a medida por lá. Foi uma luta conseguir resolver isso, e ainda precisei entrar com pedido para ele ficar em casa para que pudessmos cuidar da perna. O juiz negou o pedido, afirmando que a unidade tinha recursos para cuidar dele. Mas meu filho começou a entrar em surto, via coisas, não conseguia dormir sem uso de remédio. Uma outra juíza avaliou a situação e permitiu que ele fosse para casa. Naquela altura, eu achei que o pior já tinha passado, mas algo me dizia que ele não ia sair daquela vida. O pensamento dele era o mesmo.
Eu corri risco quando ele foi para a minha casa porque, na época, eu morava num lugar que ficava entre territórios de facções rivais. Ele não botava nem a cara do lado de fora. Nesse período, estávamos em Copa do Mundo e ele cismou que queria ir para a Penha, assistir aos jogos com os amigos. Ele foi e, assim, nos afastamos. Meu último contato com ele foi em uma reunião de família. Eu, ele, minha mãe, meu marido e a minha netinha mais velha, que já era nascida. Esse dia a gente fez lasanha... ele amava lasanha. Foi a última conversa que eu tive com ele.
Eu sempre me culpei muito. Perguntava para Deus: “Por que fez isso comigo?”. Eu só escolhi ter um filho e sempre procurei dar tudo do melhor para ele. Hoje, quando eu tenho a oportunidade de conversar com outras mães, sempre falo: “Não queira suprir a sua ausência com coisas materiais. Eu aprendi isso da pior forma possível. Jamais substitua o momento com seu filho dando presentes, coisas caras. Eu cheguei a importar uma chuteira para ele, queria que ele tivesse a melhor. Nessa útltima conversa, questionei ele sobre o porquê. E ai, entendi que eu não tinha 100% de culpa.
Ele falou assim: “Mãe, você não teve culpa. Gosto de ser bandido, dessa adrenalina, de roubar... você não tem culpa de nada”. Ouvir isso me doeu muito. Nenhuma mãe cria um filho pra isso, pode ter certeza. Mesmo as mães que idolatram o filho, aceitam o dinheiro sujo, elas não engravidaram desejando que fosse assim. É uma vida de muita ilusão. É farra, dinheiro, droga, mulher, você perde totalmente a autonomia, o direito de ir e vir. Meu filho amava a praia e a última vez que viajamos foi quando a bomba ainda não tinha estourado. Eu tentava conversar, dizia que ele ia perder isso tudo, mas nada o fez mudar de ideia. Você mostra o caminho, conduz, mas caráter... infelizmente, você já nasce. Eu não consigo colocar caráter em você, nem você consegue colocar em mim, a gente já nasce com ele. Então, é duro uma mãe ouvir de um filho, de um único filho, que ele gostou de ser bandido.
Eu estava cansada já. Era noite e noite sem dormir. Meu trabalho ajudou muito nesse período porque eu não tive luto. Fiquei três dias em casa e depois eu voltei a trabalhar. Tive que voltar a trabalhar. Minha vida não pôde parar, né. A gente nasceu pobre, tem que correr atrás. Depois que teve essa última operação (na Penha), estive com a minha mãe e, durante uma conversa, falamos: “imagina se fosse há dois anos, com ele aqui”. Eu acho que teria enlouquecido. Eu sinto muita saudade do meu filho, mas aquele que era meu amigo. Que me elogiava quando eu me arrumava. Que reparava quando eu estava com cabelo feito, colocava cílios. Nesse mundo que ele seguiu, ninguém é amigo de ninguém, e eu falava isso para ele. A única amiga que ele tinha era eu."
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