Política
'Bolsonaro usou seus seguidores para escapar aos próprios crimes': veja trechos do relatório da CPI do 8 de Janeiro
Documento que será votado nesta quarta-feira pede o indiciamento de 61 pessoas, inclusive do ex-presidente
A relatora da CPI 8 de janeiro, Eliziane Gama (PSD-MA) leu, nesta terça-feira, o relatório final da comissão, após quase cinco meses de trabalhos do colegiado no Congresso. O documento, que será votado nesta quarta, pede o indiciamento de 61 pessoas, entre elas o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), apontado como autor intelectual das invasões aos prédios da Praça dos Três Poderes, em Brasília.
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Com 1.333 páginas, o relatório traz em suas laudas frases de efeito e diversas menções a teóricos e pensadores históricos. Antes de iniciar a leitura do documento, Eliziane destacou que seu parecer tinha como objetivo mostrar que o 8 de janeiro foi o "maior ataque à democracia" da história recente.
Leia a íntegra do documento
— Como se verá nas páginas que se seguem, a democracia brasileira foi atacada: massas foram manipuladas com discurso de ódio; milicianos digitais foram empregados para disseminar o medo, desqualificar adversários e promover ataques ao sistema eleitoral; forças de segurança foram cooptadas; tentou-se corromper, obstruir e anular as eleições; um golpe de Estado foi ensaiado; e, por fim, foram estimulados atos e movimentos desesperados de tomada do poder — afirmou a relatora sobre o texto.
Veja trechos de destaque do relatório
Sobre o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL):
As investigações aqui realizadas, os depoimentos colhidos, os documentos recebidos permitiram que chegássemos a um nome em evidência e a várias conclusões. O nome é Jair Messias Bolsonaro.
Sobre o que veio antes do 8 de janeiro:
É preciso, sobretudo, que o golpe não pareça golpe. Por isso é importante atacar as instituições, descredibilizar o processo eleitoral, legitimar preventivamente a tomada do poder. É preciso tentar a destruição da democracia “tijolo a tijolo”, para que ninguém consiga perceber a erosão gradual.
Sobre os bloqueios nas estradas pela PRF no segundo turno e movimentações posteriores do ex-presidente:
Será importante também tumultuar, obstruir as eleições. Impedir que os eleitores do candidato adversário cheguem até as urnas. Tentar invalidar, sem justificativa razoável, a maioria dos votos do segundo turno, e apenas os do segundo turno. Fazer uso de todo tipo de chicana jurídica para adiar ou anular as eleições.
Sobre o papel das Forças Armadas:
O Oito de Janeiro é resultado da omissão do Exército em desmobilizar acampamentos ilegais que reivindicavam intervenção militar; da ambiguidade das manifestações e notas oficiais das Forças Armadas, que terminavam por encorajar os manifestantes, ao se recusarem a condenar explicitamente os atos que atentavam contra o Estado Democrático de Direito; e de ameaças veladas à independência dos poderes, como a praticada pelo então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, na véspera de importante julgamento no STF.
Sobre a postura de Bolsonaro após a derrota nas urnas para Lula:
A negativa formal em reconhecer a derrota, estimulando teorias conspiratórias de teor antidemocrático, se inaugura no Brasil, de forma expressa, no pleito de 2022, quando não houve sequer o simbolismo formal da alternância de poder.
Ainda sobre o comportamento do ex-presidente:
Jair Bolsonaro soube se utilizar do ressentimento nutrido por algumas corporações, especialmente de origem militar, mas também civis, contra governos anteriores. Algumas dessas instituições, a partir de pretensos reconhecimento e valorização que obtiveram nos últimos anos, foram ao mesmo tempo reféns e algozes do bolsonarismo, tendo sido utilizadas para interferir ativamente no resultado do pleito eleitoral de 2022.
Sobre o crescimento de movimentos negacionistas:
Evidências científicas passaram a ser contínua e repetidamente negligenciadas: a Terra seria plana, o homem não teria pisado na lua, não haveria aquecimento global, vacinas provocariam autismo, a AIDS teria sido criada em laboratório, o próprio governo dos Estados Unidos teria orquestrado e executado os ataques do Onze de Setembro, entre inúmeras outras. Inúmeras vidas foram perdidas em razão dessa promoção massiva de “notícias” falaciosas durante a pandemia de Covid-19 e, aparentemente, muitas ainda serão sacrificadas.
Sobre o papel das plataformas digitais:
O negacionismo patrocinado pelo ecossistema digital, com um sem-número de ditos “influenciadores digitais” de má índole, é realmente mortal. Frise-se, no entanto, que a quase irrestrita maioria dos atores do ambiente digital é muito bem-intencionada, mas o funcionamento das plataformas digitais insiste em dar mais ressonância aos discursos daqueles que se prestam ao mal.
Sobre o chamado "gabinete do ódio":
Cabe pontuar a existência de diversos elementos que apontam a utilização de recursos públicos, com o aproveitamento da estrutura física da rede de computadores interna do Palácio do Planalto, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, por assessores ligados, ainda que indiretamente, ao ex-Presidente da República, para a difusão de notícias falsas com fim político. Essa rede de agentes era utilizada para divulgar ataques às instituições democráticas, seus membros, candidatos a cargos políticos, ou seja, para atuar contra o regime democrático.
Sobre o papel de Bolsonaro nos atos, mais uma vez:
Bolsonaro, como se vê, pode ser considerado o grande autor intelectual dos eventos do 08 de Janeiro, pois pretendia ser seu maior beneficiário em caso de sucesso no intento golpista. A sua presença nas redes sociais é feita a partir das palavras de baixo calão e do deboche, articulando o ódio, a ignorância e a mediocridade, de modo a reverberar nos sentimentos mais baixos de uma população assolada pela crise econômica e social.
Sobre a política armamentista de Bolsonaro:
As investigações sobre as compras de armas e munições feitas por George Washington (preso por planejar um ataque nos arredores do aeroporto de Brasília) escancararam os efeitos do descontrole e da falta de fiscalização das aquisições de armas de fogo e de munições durante o governo Bolsonaro. O uso de CACs armados foi uma tática utilizada por grupos que participaram das ações coordenadas de violência política e de tentativa violenta de abolição do Estado democrático de direito.
Sobre os ataques às urnas após o primeiro turno:
Logo após o primeiro turno, voltaram a circular notícias falsas sobre as urnas eletrônicas, mas os ataques foram circunscritos à eleição para presidente. O ataque era, sobretudo, inconsistente, pois afirmava que as mesmas urnas que haviam se revelado confiáveis para as eleições parlamentares não o seriam no caso de eleições presidenciais.
Sobre os dias seguintes ao segundo turno:
Bolsonaro não reconheceu a derrota: não fez nenhum pronunciamento ou publicação nas redes sociais, nem foi ao encontro da imprensa que o aguardava em frente ao Palácio da Alvorada na noite da eleição. Seu primeiro pronunciamento ocorreu quase 48 horas mais tarde, no dia 1º de novembro, em fala de pouco mais de dois minutos, em que agradeceu os votos recebidos e disse que cumpriria a Constituição, mas em que não se referiu ao candidato eleito.
Durante o recolhimento de Bolsonaro, consolidaram-se três frentes de contestação dos resultados das eleições: (i) a frente popular, formada por ditos “patriotas”, nas estradas e nas portas dos quartéis, que acreditavam estar em uma missão histórica, verdadeira cruzada em defesa da liberdade e contra um suposto “comunismo”; (ii) a frente empresarial, responsável pelo apoio material, logístico e financeiro aos atos antidemocráticos; e (iii) a frente institucional, integrada por autoridades, parlamentares, militares e políticos do entorno de Bolsonaro.
Sobre os acampamentos diante de quartéis:
Seria inviável pensar que qualquer movimento social conseguiria instalar um acampamento na porta do quartel, a poucos metros do coração do Exército brasileiro. Não há registro de nenhum outro acampamento dessa natureza no Setor Militar Urbano desde o processo de redemocratização brasileira. O próprio general Dutra, em depoimento a esta CPMI, confirmou ser “algo inédito” uma manifestação com a concentração e a presença permanente por tanto tempo no entorno do Exército Brasileiro.
Depois do fracasso das tentativas de anulação das eleições e do comportamento dúbio das Forças Armadas, e com a proximidade da diplomação e da posse de Lula, o modelo da espera passiva dos acampamentos golpistas parecia ter se esgotado. A única saída para o movimento parecia ser a aposta no caos: seria preciso cruzar a fronteira entre desobediência civil e a ação direta, abandonar as manifestações “pacíficas e ordeiras”, tomar a frente do processo e promover atos violentos que inviabilizassem o início do novo governo e provocassem a “intervenção militar federal”.
Ao pedir o indiciamento de Bolsonaro:
Visto como figura "mítica" por seus apoiadores, Jair Bolsonaro se utilizou como pôde do aparato estatal para atingir seu objetivo maior: cupinizar as instituições republicanas brasileiras até a seu total esfacelamento, de modo a se manter no poder, de forma perene e autoritária.
O então presidente tem responsabilidade direta, como mentor moral, por grande parte dos ataques perpetrados a todas as figuras republicanas que impusessem qualquer tipo de empecilho à sua empreitada golpista. Agentes públicos, jornalistas, empresários, militares, membros dos Poderes: todos sofreram ataques incessantes por parte de Jair Bolsonaro e de seus apoiadores, muitos deles ocupantes de cargos públicos, que se utilizavam da máquina estatal para coagir e agredir pessoas.
Os fatos aqui relatados demonstram, exaustivamente, que Jair Messias Bolsonaro, então ocupante do cargo de presidente da República, foi autor, seja intelectual, seja moral, dos ataques perpetrados contra as instituições, que culminou no dia 8 de janeiro de 2023.
Ao pedir o indiciamento de Walter Braga Netto:
Após o segundo turno das eleições de 2022, Braga Netto fez parte do que foi denominado como o "QG do Golpe", uma casa situada no bairro do Lago Sul, região nobre de Brasília, alugada para sediar o comitê de campanha de Jair Bolsonaro à reeleição, e onde se reuniam diversas autoridades políticas. Nessa casa, foram discutidas várias ideias de implementação de planos antidemocráticos.
Ao pedir o indiciamento de Augusto Heleno:
Augusto Heleno teve acesso, em reuniões particulares, fora da agenda oficial do presidente, a "minutas de golpe", sem que tivesse se insurgido contra a possibilidade de decretação de ações golpistas, como de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que seria colocada em prática para iniciar a intentona autoritária de Jair Messias Bolsonaro.
Ao pedir o indiciamento de Mauro Cid:
Foram encontrados, no celular de Mauro Cid, a minuta de um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e alguns "estudos" destinados a dar suporte a um eventual golpe de Estado. Os documentos estavam em mensagens trocadas com o sargento Luís Marcos dos Reis. Além da minuta do golpe, Cid e dos Reis também discutiam, em mensagens, como convencer autoridades do Exército a aderir ou a colaborar com a empreitada golpista.
Ao pedir o indiciamento de Anderson Torres:
Anderson Torres era uma das autoridades públicas que mais possuía conhecimento a respeito das ameaças golpistas, especialmente durante o período depois das eleições presidenciais de 2022. Este Relatório demonstrou, cabalmente, que em vez de combater as ações criminosas que culminaram na violação ao prédio dos Três Poderes da República, Anderson Torres aderiu subjetivamente à vontade de Jair Messias Bolsonaro na intentona golpista.
Ao pedir o indiciamento de Silvinei Vasques, ex-diretor-geral da PRF:
Como chefe da instituição, instrumentalizou o cargo que ocupava para atuar politicamente em favor do então candidato à reeleição Jair Messias Bolsonaro.Vasques se utilizou das redes sociais para pedir votos para Jair Messias Bolsonaro, sendo mais um exemplo da utilização indevida do cargo público para fins pessoais, visando à permanência em seu cargo, além de fins escusos descobertos por esta CPMI.
Apesar de qualquer órgão policial, ainda que seja de polícia ostensiva, demandar informações de inteligência para executar suas funções, há indícios de que a PRF exorbitou de suas funções, sendo instrumentalizada como polícia de governo – e não de Estado – para atingir fins escusos.
Ao pedir o indiciamento da deputada federal Carla Zambelli:
Uma das parlamentares mais atuantes no bolsonarismo, Carla Zambelli sempre aderiu às narrativas criadas pelo presidente da República para atacar as instituições brasileiras, sem a apresentação de qualquer prova.
É inegável que a deputada federal Carla Zambelli, abusando de suas prerrogativas parlamentares, difundiu informações falsas a respeito do processo eleitoral. Entretanto, seu fim maior não era o de simplesmente questionar as urnas eletrônicas, mas se utilizar da aparente dúvida maliciosamente incutida na população a respeito da lisura do pleito para que o plano golpista de Jair Messias Bolsonaro – do qual sempre fez parte – fosse colocado em prática.
Ao sugerir a inclusão do crime de Comunicação enganosa em massa no Código Penal:
A nosso ver, é imprescindível que haja efetiva punição para indivíduos que, sob o manto da liberdade de expressão, subvertam os princípios democráticos e comprometam a higidez do processo eleitoral, ainda que ― como quase todo tipo penal ― seja exigido trabalho hermenêutico do juiz para que ocorra a perfeita subsunção da conduta.
Na conclusão:
A crise da democracia ― assinalada no Capítulo 3 deste relatório ― está ainda de pé. Embora as instituições democráticas brasileiras tenham sobrevivido às tentativas de ruptura da ordem constitucional que se desenvolveram antes, ao longo e após o processo eleitoral de 2022, as ameaças ainda pairam no ar.
Jair Bolsonaro usou seus seguidores para escapar aos próprios crimes. Para cada um dos que nele participaram, o Oito de Janeiro foi uma tentativa de golpe de Estado. Eles queriam tomar o poder. Eles acreditavam nessa possibilidade. Eles o diziam abertamente: em voz alta, nas redes sociais, em cada faixa ostentada na frente do Quartel-General do Exército. A invasão e a depredação dos prédios públicos seriam apenas o estopim. A anarquia se espalharia. O Brasil se contagiaria. A República cairia.
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