Geral
O Natal dos pobres: Padre Júlio Lancellotti, a tradição cristã e a Igreja que não passa ao largo
Na última noite de Natal, ao presidir a Missa do Galo na Basílica de São Pedro, o Papa Leão XIV recolocou no centro do cristianismo uma verdade frequentemente esquecida: Deus não se revela no conforto do poder, mas na precariedade da carne. O presépio, afirmou o Pontífice, não é ornamento piedoso; é denúncia histórica e teológica. Ali, o Verbo eterno nasce pobre, vulnerável e deslocado, assumindo a condição humana em sua fragilidade (cf. Lc 2, 1-20; Jo 1, 14) e, assim, interpela um mundo que fecha espaço para os pequenos, os estrangeiros e os descartados.
Entre as afirmações centrais da homilia, uma ganhou relevo: “Negar ajuda aos pobres é rejeitar Deus”. Essa formulação não se reduz a um apelo moral; brota da lógica da Encarnação. O Natal deixa de ser apenas memória litúrgica e converte-se em critério de discernimento espiritual, social e eclesial: onde a dignidade humana é ferida, Deus é recusado; onde a vida é acolhida, Deus encontra morada (cf. Mt 25, 31-46).
Na Missa do dia 25 e na mensagem Urbi et Orbi – dirigida à cidade de Roma e ao mundo – Leão XIV aprofundou essa leitura. O Verbo que “se fez carne” continua a manifestar-se, afirmou, na carne ferida de homens e mulheres privados de dignidade: pessoas em situação de rua, migrantes forçados, trabalhadores explorados, vítimas da guerra e jovens sem horizonte. Trata-se de uma afirmação cristológica direta: Cristo se identifica com aqueles que a sociedade torna invisíveis (cf. Is 53, 3; Mt 25, 40). Ao nomear esses rostos concretos, o Papa desfaz qualquer tentativa de reduzir o Natal a um evento intimista ou desencarnado. Celebrar o nascimento de Cristo implica reconhecer onde Ele continua a nascer e a sofrer na história presente.
Essa leitura natalina situa-se no coração da Doutrina Social da Igreja. Princípios como a dignidade da pessoa humana, o bem comum, a solidariedade, a destinação universal dos bens e a opção preferencial pelos pobres não aparecem como apêndices sociais da fé, mas como sua verificação histórica. Leão XIV não introduziu novidades doutrinais; levou às últimas consequências aquilo que a tradição já afirmava. A fé cristã, recordou o Pontífice, não se mede pela correção do discurso religioso, mas pela proximidade efetiva com quem sofre (cf. 1Jo 3, 17-18).
Os documentos recentes do magistério reforçam essa orientação. Na encíclica Dilexit nos, o Papa Francisco insistiu que o amor cristão não pode permanecer abstrato ou retórico: a caridade que não se traduz em práticas concretas de cuidado e justiça esvazia-se. A espiritualidade autêntica nasce da contemplação, mas prolonga-se necessariamente na diaconia; amor a Deus e responsabilidade social exigem-se mutuamente (cf. 1Jo 4, 20-21). Na exortação apostólica Dilexi te, Leão XIV afirma que os pobres não constituem um “tema social”, mas uma “questão familiar” para a Igreja: pertencem ao “nós” do Evangelho. A parábola do Bom Samaritano reaparece como mandato permanente – ver, aproximar-se, cuidar e sustentar (cf. Lc 10,33–35).
Essa compreensão atravessa toda a tradição cristã. A Igreja apostólica organizou a partilha dos bens para que ninguém passasse necessidade (cf. At 2, 44-45; 4, 32-35) e instituiu diáconos para garantir que os mais vulneráveis não fossem esquecidos (cf. At 6, 1-6). A Carta de Tiago é contundente ao afirmar que a fé sem obras é morta (cf. Tg 2, 14-17). O Evangelho de Mateus estabelece o critério último do juízo escatológico no cuidado com os famintos, os nus, os estrangeiros e os prisioneiros (cf. Mt 25, 35-36).
Os Padres da Igreja aprofundaram essa intuição. São Basílio Magno, por exemplo, denunciava como injustiça a acumulação de riquezas diante da miséria alheia e organizou estruturas concretas de acolhimento e cuidado. Na Idade Média, São Francisco de Assis transformou a pobreza em protesto espiritual contra uma Igreja afastada do Cristo humilde, sem romantizar a miséria, mas restaurando a fraternidade. Mais perto do nosso tempo, Santa Teresa de Calcutá levou ao extremo a identificação cristológica ao servir “os mais pobres entre os pobres”. No Brasil, Santa Dulce dos Pobres traduziu a fé em hospitais, abrigos e cuidado cotidiano.
É nesse horizonte bíblico, patrístico, magisterial e tradicional que se insere o trabalho do Padre Júlio Lancellotti. Sua atuação junto às pessoas em situação de rua, em São Paulo, não configura exceção pastoral nem iniciativa individual isolada; trata-se de uma prática eclesial coerente com a tradição cristã e alinhada ao magistério explicitado por Leão XIV neste Natal de 2025. Padre Júlio não fala dos pobres à distância: convive com eles, conhece seus nomes, histórias e feridas. Alimenta, acolhe, acompanha, defende juridicamente, denuncia estruturas que produzem exclusão e enfrenta a indiferença social que naturaliza a miséria urbana. Sua pastoral nasce do encontro cotidiano com a carne ferida de Cristo presente nos descartados (cf. Mt 25, 40).
À luz da Doutrina Social da Igreja, esse trabalho expressa a opção preferencial pelos pobres como critério de fidelidade evangélica. À luz do Evangelho, atualiza o mandato do Bom Samaritano: não passar ao largo, não delegar o cuidado, não espiritualizar o sofrimento (cf. Lc 10, 31-33). À luz do Natal pregado por Leão XIV, revela onde o presépio continua armado hoje – nas calçadas, sob viadutos, nos corpos exaustos de quem foi expulso do convívio social.
O incômodo provocado por essa atuação diz menos sobre o Padre Júlio e mais sobre uma religiosidade que prefere um Deus distante, abstrato e inofensivo. O Natal de 2025 não admite essa evasão. Ele recorda que a Encarnação tem consequências históricas: se Deus se fez pobre, não há espiritualidade cristã legítima que ignore os pobres (cf. 2Cor 8, 9).
Nesse sentido, o trabalho do Padre Júlio Lancellotti constitui sinal visível de uma Igreja em saída, missionária, samaritana e diaconal. Não se confunde com militância ideológica, mas expressa fidelidade cristológica. É a Igreja que aceita sujar as mãos porque reconhece que foi assim que Deus entrou na história. Uma Igreja que, ao celebrar o Natal, compreende que o Verbo continua a nascer onde houver alguém disposto a não passar ao largo.
(*) Doutor e Letras e Linguística, Mestre em Sociologia, Especialista em História de Alagoas, Graduado em Filosofia, Professor do Instituto Federal de Alagoas – Ifal.
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