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Mais restrições, menos integração: vistos são usados por EUA e União Europeia como arma política?
Recentemente, a União Europeia (UE) decidiu restringir a emissão de vistos Schengen de múltiplas entradas para cidadãos russos, medida que foi considerada por Moscou "discriminatória". Já nos Estados Unidos, em meio ao endurecimento das regras migratórias, o governo passou a dificultar a entrada de estrangeiros com problemas de saúde.
Mais barreiras, menos integração global. Nas últimas semanas, os UE e EUA anunciaram novas restrições nas emissões de vistos. De um lado, as embaixadas norte-americanas receberam uma diretriz para dificultar vistos para a entrada ou permanência de estrangeiros com histórico de complicações de saúde ou que possam depender de alguma assistência governamental. Do outro, a Comissão Europeia aprovou a restrição para cidadãos russos, medida apoiada por todos os membros do bloco. Medidas mostram que os vistos são cada vez mais usados como arma política?
Para o mestre em relações internacionais, professor e pesquisador associado do Núcleo de Estudos dos Países BRICS (NuBRICS) Lier Pires Ferreira, a questão é complexa e demonstra "xenofobia, racismo e aporofobia". O especialista ressalta ainda à Sputnik Brasil que essas políticas restritivas refletem "uma combinação de avaliações de risco real ou imaginário" e vão em direção ao aumento das barreiras nas políticas migratórias que se tornaram bandeira do Norte Global.
"Por um lado, políticas migratórias restritivas como vemos atualmente nos EUA e na União Europeia respondem a imperativos de segurança como controle de fronteiras, proteção a mercados e reação em face de ameaças reais ou imaginárias como terrorismo, tráfico e imigração irregular, essa última seletivamente direcionada a grupos social ou culturalmente indesejáveis, como os islâmicos na Europa e os latinos nos EUA", enfatiza.
Diante do caráter seletivo das novas determinações, Pires ainda vê o uso dos vistos como uma "ferramenta político-diplomática pela qual certos governos exercem pressão sobre países estrangeiros em cenários de sobrecarga geopolítica", operando como um instrumento de poder sem necessidade de recorrer às medidas militares ou econômicas mais severas.
"Tais medidas restritivas muitas vezes produzem externalidade e efeitos colaterais. Assim, restrições de vistos podem levar a respostas similares de países alvos, exacerbando tensões. Igualmente, para além de lideranças políticas tidas como persona non grata, é fato que essas medidas afetam predominantemente os cidadãos comuns, limitando intercâmbios recreativos, culturais ou acadêmicos, podendo ter efeitos de longo prazo nas relações bilaterais", resume.
É difícil tirar o visto?
A exigência de vistos de entrada, tanto para turismo, estudo ou residência, vai variar conforme a nacionalidade. Enquanto passaportes de países como Cingapura, Coreia do Sul e Japão são os mais aceitos no mundo sem a necessidade do documento em mais de 189 nações, os casos de Afeganistão, Síria, Iraque e Iêmen estão na outra ponta, conforme o último levantamento divulgado pelo Henley Passport Index.
O pesquisador aponta que vetar candidatos com base em questões de saúde e até limitar vistos para cidadãos de um local específico pode ser visto como as duas faces de uma mesma moeda.
"Portanto, em qualquer dos casos, essas restrições revelam como as políticas de imigração e vistos são, na verdade, ferramentas poderosas para desenhar os limites — físicos, econômicos e ideológicos — da nação, podendo, inclusive, ser motivadas por questões eugênicas, como o crescimento do estoque populacional desejável e uma diminuição dos indesejáveis ou fracos", explica.
Contradição de valores e hipocrisia ocidental
Apesar de intensificarem medidas restritivas para a mobilidade internacional, as democracias ocidentais na Europa e EUA defenderam por décadas a globalização como um valor universal, o que, segundo Pires, mostra a "contradição de valores" e "uma certa hipocrisia" de países que também se colocam como defensores dos direitos humanos.
"O segundo ponto a ser considerando é a percepção de medo e da insegurança, permitindo supor que os países ocidentais já não estão mais confiantes em seus próprios valores ou em suas capacidades de enfrentar desafios globais. Na verdade, as grande decisões globais cada vez passam menos por centros tradicionais como Londres, Paris ou Washington, passando crescentemente por novos polos como Pequim, Moscou, Nova Deli, Jacarta ou Brasília", diz.
Aliado a isso, o pesquisador do NuBRICS ressalta uma tentativa de estigmatização de certos grupos étnico-raciais, o que também ajuda a fortalecer os nacionalismos.
"Por fim, as restrições à mobilidade internacional, seja pela via migratória, seja pela do turismo, hoje posta em marcha pelas grandes democracias ocidentais, sinalizam uma mudança importante nas dinâmicas de poder, valores e relações internacionais. Esses impactos simbólicos podem influenciar não apenas a percepção global dessas democracias, mas também suas próprias coerções internas e suas fraturas políticas", argumenta.
O professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense Thiago Rodrigues acrescenta à Sputnik Brasil que as medidas mostram um "indício da volta dos nacionalismos e das barreiras diante de uma situação internacional tanto na prática quanto no discurso da globalização".
Conforme o especialista, no caso norte-americano ainda há pressão sobre países fronteiriços, como o México, a aumentarem o rigor sobre as políticas migratórias.
"Atualmente, o México mantêm a exigência de visto para diversos países, sobretudo na América Latina. Com isso, na prática, esses países acabam funcionando como uma espécie de barreira externa às fronteiras norte-americanas, atuando como um ponto de triagem para quem tenta se aproximar do território dos EUA. Esse tipo de triagem, ou a transformação de países terceiros em obstáculos para impedir a chegada ou a aproximação de migrantes às fronteiras do Norte Global, é um instrumento que também se sustenta em justificativas de segurança".
EUA e os riscos de cidadãos barrados para a Copa do Mundo
Já o doutor em relações internacionais e pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Regionalismo e Política Externa (LERPE), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Nathan Morais lembra à Sputnik Brasil que uma das principais competições esportivas do globo, a Copa do Mundo, terá entre uma das suas sedes os Estados Unidos, ao lado de México e Canadá. Porém, conforme o especialista, vários países que já se classificaram são considerados "hostis pela política externa" norte-americana, o que pode dificultar a obtenção de vistos de cidadãos que queiram acompanhar os jogos no país.
"É o caso do Irã, também do Haiti, que se classificou nesta semana, e também da República Democrática do Congo, que está na repescagem e pode se classificar, e já está tendo uma certa polêmica envolvendo o governo [do presidente Donald] Trump e a Fifa, cujo presidente [Gianni Infantino] é muito ligado ao norte-americano. Então há esse temor da comunidade internacional de que essas seleções de países considerados hostis pelos Estados Unidos tenham dificuldades em disputar o campeonato", conta.
Uso da imigração como tema político
Por fim, o pesquisador da UERJ afirma que as decisões sobre os vistos anunciadas por Bruxelas e Washington ocorrem em um contexto "cada vez mais claro" de uso da migração como tema político. Segundo o especialista, essa situação também ocorre no Chile, que terá um disputado segundo turno entre o candidato da direita, José Antonio Kast, e a comunista Jeannette Jara. Entre os principais temas, está justamente a imigração, principalmente de venezuelanos.
"Essa realidade se repete em diversos países e, no Norte Global, especialmente na Europa e nos Estados Unidos, já é observada há bastante tempo. No caso norte-americano, desde o primeiro mandato de Donald Trump a pauta migratória tornou-se tornou uma prioridade do governo. Agora, em seu segundo mandato, ele vem endurecendo ainda mais essas regras e a política de migração. Temos o aumento de deportações e casos de violência contra imigrantes", finaliza.
Já em relação à Rússia, Morais afirma que a questão dos vistos é apenas mais um componente europeu de tentativa de boicote e tentativa de isolamento do país.
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