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Meu Jogo: Erik Cardoso narra dia em que se tornou o brasileiro mais rápido da História
Com 9s97, ele é o primeiro (e único) brasileiro a derrubar a barreira dos 10 segundos na prova dos 100m rasos, a mais nobre do atletismo; ele disputará o Mundial a partir do dia 19
Sempre foi assim: quando tinha uma competição importante, levantava da cama e falava para mim mesmo: “Hoje, o bicho sai”. O bicho era derrubar a barreira dos 10 segundos na prova dos 100m do atletismo. Marca que nós brasileiros perseguíamos desde julho de 1988, quando Robson Caetano fez 10 cravados, na final do Ibero-Americano, na Cidade do México. Ele chegou a correr 9s99, mas teve o tempo corrigido. Isso foi há 35 anos.
Desde então, a pergunta que nós velocistas mais ouvíamos era: “Quando um brasileiro vai correr abaixo dos 10 segundos? Quem vai ser o primeiro?”. Em 1968, o americano Jim Hines foi o pioneiro dos pioneiros.
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Não me sentia pressionado a derrubar nenhum tabu. O importante sempre foi buscar meu melhor tempo. E na sexta-feira, 28 de julho, na final do Campeonato Sul-Americano, em São Paulo, acordei disposto a melhorar a minha marca.
Até então, eu tinha corrido duas vezes 10s01. Poderia fazer 10s00 que a meta estaria batida e agradeceria a Deus. A verdade é que aquela sexta-feira começou igual a todos os dias de competição. Não tinha ideia de que seria o dia mais importante da minha vida — até este momento, aos 23 anos.
Nossos treinadores, Rosana Soares e Darci Ferreira, sempre nos disseram, para mim e para Felipe Bardi, um grande amigo com quem divido apartamento em Santo André (SP), que estávamos próximos: “Vocês dois estão prontos!”. Deixavam claro que tínhamos condições de correr na casa dos 9 segundos. Tanto que o Felipe fez 9s97 em julho, no Troféu Brasil, mas não teve a marca homologada, porque correu com vento a 2.1km/h a favor. Aí, não vale. Seu melhor tempo é 10s07.
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Foco e emoções
A primeira vez que pensei que poderia correr na casa dos 9 segundos foi em 5 de setembro de 2021. Nessa época, minha melhor marca era 10s23 no Brasileiro Sub-23. Em Bragança Paulista, fiz 10s01. Não achava que ia baixar tanto assim. Achei que ia para 10s20, 10s10... No Troféu Brasil, fiz de novo 10s01.
Na final do Sul-Americano, no dia D, estávamos entre corredores fortes e, no aquecimento, pensei que precisava de uma boa saída do bloco. Como tinha feito na semifinal, estava confiante. Nas últimas corridas, dos 50 metros em diante, na metade final da prova, eu estava desenvolvendo bem, crescendo, fazendo uma boa aceleração. Então, na minha cabeça, precisava largar bem, me manter com os rivais e, quando levantasse o tronco, para a metade final da prova, poderia chegar na frente. Mas eu tinha de me manter na briga nos primeiros 50 metros. Senão não daria para recuperar.
Ao mesmo tempo, não dá para ficar pensando muito. Porque, se pensa muito, não executa. Antes da prova, olhei em volta: muita gente, arquibancada cheia. Estava feliz. Mas veio o pensamento: “Se eu não for bem, o que esse pessoal vai falar?”. Quando isso acontece, sabe o que faço? Rezo. Imaginei que na arquibancada estavam Deus, Virgem Maria, Santa Teresinha, Padre Pio.
Veio a apresentação, aquele frio na barriga... Pedi a Deus para me proteger. Quando a gente escuta o tiro para a partida, nada mais passa na cabeça. É tudo automático. Não dá para ficar olhando para o lado, se comparando com os rivais. É preciso se concentrar na sua raia.
Quando cruzei a linha de chegada, sabia que estava no pódio. Porque não fiquei muito longe do Asinga Issamade, do Suriname. O cara fez 9s89, véio! Quando vi o tempo dele, vixe, pensei que também poderia ter ficado nos 9 segundos. Mas até sair meu resultado... Pareceu uma eternidade.
Nesse tempo, fui cumprimentá-lo: “Congrats, felicitaciones”. Mandei logo em inglês e espanhol. Depois me ajoelhei, como sempre faço, abri os braços e agradeci a Deus: “Glória ao pai, ao filho, ao Espírito Santo, como era no princípio, agora e sempre, amém”.
Foi quando pensei que havia me garantido na Olimpíada de Paris, em 2024, e no Mundial de Budapeste, a partir de 19 de agosto. Quando anunciaram meu tempo, 9s97... que loucura. Com vento a 0.8 m/s, abaixo do limite de 1.0m/s, a marca valeu! O bicho saiu!
Pensei na festa lá no céu, onde minha avó Sebastiana, que havia falecido semanas antes devido a um câncer, deve estar. Lembro de muita festa dos atletas na pista e de episódios misturados, confusos. Abracei o Felipe: “Saiu, saiu!!!”
Outros brasileiros me cumprimentaram, nunca ganhei tanto abraço. E eu procurava Darci. Ele veio na minha direção e estava chorando. Com ele, comemorei o bicho: “Tá chorando, Darci?”, provoquei. Tenho muita gratidão pelo que ele faz.
Marcas na pista
Vire e mexe, quando treino na pista de carvão lá no Sesi, escrevo um tempo no chão. Também gosto de deixar agradecimentos e já coloquei de tudo. Já havia escrito 9s97. Também 9s93. Meio aleatório. Agora me pergunto: será que este pode ser meu novo número?
Logo depois da prova, falei com minha namorada, Giovana Rosália, que estava na China, na Univesíade, para os 400m. Ela acordou todo mundo na Vila dos Atletas, naquele fuso doido. Também liguei para meus pais, Wilson e Denise, e para minha irmã, Maria Gabriela.
Meus pais assistiram à prova durante o expediente. Minha mãe é coordenadora de RH em uma empresa de papel reciclado. Meu pai opera máquinas mandrilhadoras numa empresa que faz peças para usinas. Disseram que os colegas comemoraram com eles. E também falei com o Vitão, o filho do Darci, atleta do salto com vara. Ele estava no hospital, depois de ter sofrido um acidente de moto.
Recebi a medalha do Robson Caetano. E confesso que não lembro direito o que falamos. Estava emocionado. A adrenalina foi baixar bem mais tarde. Acho que ele falou que esse tempo “estava nas nossas pernas” porque estávamos próximos de quebrar o tabu.
À noite, no quarto do hotel, com o Felipe e o Renan Gallinda (que tem 10s01), lembrei do caminho até ali. Quantas vezes não deu certo, quantas vezes fiquei triste? Já cheguei a chorar. Sei que é aprendizado e, por isso, foi uma noite engraçada, relembrando quando tomamos os maiores paus. Como em Praga, no Meeting Memorial Josef Odlozil. Que roubada. Um frio, uma chuva... Corri na raia um, cheia de poça d'água. Fui oitavo na final, com 10s53. Mano, nem pensava em tempo. Só pedia ao anjo da guarda para não me machucar.
Dormi meio acordado e, no dia seguinte, estava na final dos 4x100m. Mais um ouro. Bicho, sou muito grato, sou muito feliz. Já me perguntaram se caiu a ficha. Não sei, apesar que entender o que significou. Talvez com mais tempo... Mais para frente, vamos marcar uma comemoração. Ainda não fiz e quero que seja numa churrascaria. Adoro.
De volta para casa, na semana passada, a vida seguiu. Coloquei roupa para lavar, arrumei minhas coisas, estudei um pouco do curso de Licenciatura e de Inglês. Treinei, fiz fisioterapia. A vida voltou ao normal. Estou em viagem para o Mundial na Hungria. Qual será o novo bicho? Quem sabe terei mais um dia especial na minha vida... E que seja feita a vontade de Deus.
*Primeiro atleta brasileiro a correr os 100m abaixo dos 10s, em depoimento à repórter Carol Knoploch
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