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Como a comunidade LGBTQIA+ transformou um xingamento misógino em afirmação coletiva que está até na novela das 9

Sinônimo de vulva em inglês, ‘cunt' passou a significar uma forma ousada de vestir, depois de adotada pela cultura queer

Agência O Globo - 08/12/2025
Como a comunidade LGBTQIA+ transformou um xingamento misógino em afirmação coletiva que está até na novela das 9
Como a comunidade LGBTQIA+ transformou um xingamento misógino em afirmação coletiva que está até na novela das 9 - Foto: Joel Rodrigues / Agência Brasília

Bagdá, o personagem de Xamã em “Três Graças”, entra em cena e logo percebemos o seu senso estético: camisetas com a imagem de um leão, casacos de pele (com animal print, claro) e joias maximalistas, entre outros itens. Se for em sua casa, na fictícia comunidade da Chacrinha, o visual segue o roteiro preestabelecido, com tapetes com padrões de oncinha e estatuetas de felinos. Tal caracterização chama a atenção dos telespectadores, que começaram a chamá-lo de “traficunt” — adotando o termo que vem ganhando a internet nos últimos anos.

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Sinônimo de vulva e usado como xingamento machista, cunt chegou a ser considerada uma das palavras mais ofensivas do vocabulário inglês. Mas ganhou nova roupagem a partir da cultura ballroom e queer, passando a ser um código de poder e subversão. Se não apaga a intenção ofensiva original, passou a funcionar como “afirmação coletiva” da comunidade LGBTQIA+.

Neste universo, se você passar a se vestir de modo ousado, começará a “servir cunt”, mas com o sentido de demonstração de força e até subversão dos padrões de beleza. Um dos elementos mais associados a esse estilo é exatamente as estampas de animais que Bagdá adora (os comparsas do traficante também costumam “servir cunt”, mas com camisas de time, calças oversized, chapéus felpudos e cabelos platinados).

Confira a lista completa:

Internautas já apontaram que, na vida real, bandido nenhum se veste desse jeito. A figurinista da novela, Paula Carneiro, sabe disso: a ideia era que Vandílson (Vinicius Teixeira), Alemão (Lucas Righi) e especialmente Bagdá tivessem um figurino que não fosse realista.

— Fizemos uma pesquisa para entender aonde queríamos chegar. A proposta era de vaidade para Bagdá e seu bando — diz a figurinista. — O figurino mostra que ele quer ser soberano e por isso sempre tem um elemento remetendo aos felinos. Ele é o rei dessa selva.

Mais uma nova versão

Com perfil bem diferente de Bagdá, a influencer de moda Sarah Scar costuma servir cunt em vários looks que mostra nas redes. Scar, que se identifica como bigênero, costuma exibir composições com peças agênero, maximalistas, transparentes, e, vez ou outra, com alguma referência religiosa (e sem animal print, dessa vez). A influencer afirma que usa a nova palavra da moda sempre que se sente “sexy, feliz ou confortável” com uma roupa.

— É para dizer que algo lacrou muito — diverte-se Scar, que não vê contradição no uso da expressão em inglês que já foi insulto. — Fazemos reapropriações com diversas outras palavras. Termos como bicha, viado, sapatona são usados pela comunidade LGBT com orgulho e como símbolos de força. Usar palavras que foram criadas para nos ofender e reprimir é uma subversão.

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Professor da USP e pesquisador em sexualidade e teoria queer, Ferdinando Martins afirma que essas comunidades usam a linguagem misturando “performance, humor, ironia e formas de reinventar a própria identidade”.

— A palavra pode ser performada por meio da voz, do gesto e do ritmo e incorporada a estilos que transformam a ofensa em celebração — diz o pesquisador.

Cunt fez um caminho que outros elementos já percorreram, a exemplo do termo drag queen. A ideia de servir cunt era fazer uma performance convincente de feminilidade. A drag queen americana RuPaul atribuiu um significado para cada letra de cunt: carisma, unicidade, coragem e talento, na tradução direta para o português.

O termo passou a ser comum na linguagem de gays e adolescentes em geral, tornando-se popular em outros contextos. Beyoncé gravou “Pure/Honey”, do álbum “Renaissance”, sem qualquer objeção dado o novo conceito.

Caiu na rede

A internet acelerou a popularização do termo, afirma Natália Ayrosa, mestranda na Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora em moda e redes sociais.

— Com essa velocidade de informação, principalmente no TikTok, espalhar a informação nas redes sociais se tornou mais prático e mais rápido. A expansão e a ressignificação vêm muito a partir disso, saindo dos nichos e atingindo pessoas que não estão tão inseridas nessas culturas. É fácil abrir o Twitter e encontrar alguém falando, numa outra ressignificação, que um jogador do Flamengo serviu cunt em determinada situação — cita como exemplo.

Ferdinando Martins fala da possibilidade de a lembrança da função original do termo, de ofender, se perder:

— Para muita gente, a palavra aparece primeiro nesse contexto positivo, o que suaviza a percepção. A circulação na internet dilui o contexto histórico e pode normalizar o termo sem ensinar sua origem. Para quem foi diretamente afetado por ele, a palavra continua carregada.